
BERGER, Peter L. Perspectivas Sociológicas: uma visão humanística. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1986, pp. 78-136.
A Perspectiva Sociológica — A Sociedade no Homem
No capítulo anterior talvez tenhamos dado ao leitor excelentes motivos para crer que a sociologia deva assumir o título de "ciência sinistra", atribuído à Economia. Depois de descrevermos a sociedade como uma prisão lúgubre, devemos agora mostrar ao leitor pelo menos alguns túneis pelos quais possa escapar desse sombrio determinismo. Antes disso, contudo, temos de acrescentar mais algum negrume ao quadro.
Até aqui, abordando a sociedade sobretudo segundo o aspecto de seus sistemas de controles, temos encarado o indivíduo e a sociedade como duas entidades antagônicas. A sociedade foi vista como uma realidade externa que pressiona e coage o indivíduo. Se essa imagem não for modificada, obteremos uma impressão bastante errônea da relação, ou seja, uma impressão de massas humanas constantemente forçando seus grilhões, cedendo às autoridades coatoras de dentes rilhados, sendo levadas sempre à obediência pelo medo do que poderá ocorrer se agirem de outra forma. Tanto o conhecimento ordinário da sociedade como a análise sociológica propriamente dita nos mostram que não é este o caso. Para a maioria de nós, o jugo da sociedade parece suave. Por quê? Certamente não porque o poder da sociedade seja menor do que indicamos no último capítulo. Nesse caso, por que esse poder não nos causa maior sofrimento? Já se fez referência à resposta sociológica à pergunta – porque quase sempre desejamos exatamente aquilo que a sociedade espera de nós. Queremos obedecer às regras. Queremos os papéis que a sociedade nos atribuiu. E isto, por sua vez, é possível não porque o poder da sociedade seja menor, e sim porque é muito maior do que até agora afirmamos. A sociedade determina não só o que fazemos, como também o que somos. Em outras palavras, a localização social não afeta apenas nossa conduta; ela afeta também nosso ser. Para esclarecer esse elemento essencial da perspectiva sociológica, examinaremos mais três áreas de investigação e interpretação, as da teoria do papel, a sociologia do conhecimento e a teoria do grupo de referência.
A teoria do papel foi uma criação intelectual quase inteiramente americana. Alguns de seus germes remontam a William James, mas seus pais diretos são outros dois pensadores americanos, Charles Cooley e George Herbert Mead. Não podemos pretender fazer aqui uma introdução histórica a esse fascinante setor da história intelectual. Ao invés de tentar sequer esboçar essa história, procederemos mais sistematicamente, começando a examinar a teoria do papel com outra olhada ao conceito de Thomas, a definição da situação.
O leitor se recordará que Thomas via a situação social como uma realidade estabelecida por acordo ad hoc entre aqueles que dela participam, ou, mais exatamente, entre aqueles que a definem. Do ponto de vista do participante individual, isto significa que cada situação lhe apresenta expectativas específicas e exige dele respostas específicas a essas expectativas. Como já vimos, em quase todas as situações sociais existem pressões poderosas para garantir que as respostas sejam as adequadas. A sociedade existe porque as definições da maioria das pessoas para as situações mais importantes são mais ou menos as mesmas. Os motivos do editor e do autor dessas linhas podem ser um tanto diferentes, mas as maneiras como ambos definem a situação em que este livro está sendo produzido são suficientemente similares para que a produção seja possível. Da mesma forma, numa sala de aula podem estar presentes interesses os mais díspares, alguns dos quais terão pouca relação com a atividade educacional que supostamente ali se desenrola; entretanto, na maioria dos casos estes interesses (digamos que um estudante deseja estudar a matéria lecionada, ao passo que outro simplesmente se
matricula em todos os cursos freqüentados por uma certa loura) podem coexistir numa situação sem a destruir. Em outras palavras, há uma certa margem no grau em que a resposta tem de satisfazer a expectativa para que uma situação permaneça sociologicamente viável. E' claro que será inevitável alguma forma de conflito ou desorganização social se as definições das situações forem excessivamente discrepantes — digamos, se alguns estudantes interpretarem o encontro na sala de aula como uma festa ou se um autor não tiver intenção de produzir um livro, apenas utilizando seu contrato com um editor para pressionar outro.
Embora um indivíduo médio encontre expectativas muito diferentes em diversas áreas de sua vida, as situações que produzem essas expectativas enquadram-se em certos grupos. Um estudante pode fazer dois cursos diferentes, com dois professores, em dois departamentos universitários, com consideráveis variações nas expectativas encontradas nas duas situações (digamos, formalidade ou informalidade nas relações entre professor e alunos). Não obstante, as situações serão suficientemente semelhantes entre si e a outras situações escolares anteriores para possibilitar ao estudante dar em ambas situações essencialmente a mesma resposta geral. Para usarmos outras palavras, em ambos os casos, com apenas algumas modificações, ele será capaz de desempenhar o papel de estudante. Um papel, portanto, pode ser definido como uma resposta tipificada a uma expectativa tipificada. A sociedade pré-definiu a tipologia fundamental. Usando a linguagem do teatro, do qual se derivou o conceito de papel, podemos dizer que a sociedade proporciona o script para todos os personagens. Por conseguinte, tudo quanto os atores têm a fazer é assumir os papéis que foram distribuídos antes de levantar o pano. Desde desempenhem seus papéis como estabelecido no script o drama social pode ir adiante como planejado. O papel oferece o padrão segundo o qual o indivíduo deve agir na situação. Tanto na sociedade quanto no teatro, variará a exatidão com que os papéis fornecem instruções ao ator. Tomando como exemplo os papéis ocupacionais, o papel do lixeiro envolve um padrão mínimo, ao passo que os médicos, clérigos e oficiais do exército têm de adquirir toda espécie de maneirismos característicos, hábitos de linguagem e gestos, tais como otimismo diante do doente, palavreado santarrão ou garbo militar. Contudo, seria erro grave considerar o papel apenas como um padrão regulador para ações externamente visíveis. Uma pessoa sente-se mais apaixonada ao beijar, mais humilde ao se ajoelhar e mais indignada ao sacudir o punho. Isto é, o beijo não só expressa paixão, como também a fabrica. Os papéis trazem em seu bojo tanto as ações como as emoções e atitudes a elas relacionadas. O professor que representa uma cena de sabedoria vem a se sentir sábio. O pregador passa a crer no que prega. O soldado descobre pruridos marciais em seu peito ao vestir a farda. Em cada um desses casos, embora a emoção ou atitude já existissem antes de se assumir o papel, este, inevitavelmente, reforça aquilo que já existia. Em muitos casos há Bons motivos para se acreditar que absolutamente nada antecedia, na consciência do ator, o desempenho do papel. Em outras palavras, uma pessoa se torna sábia ao ser nomeado professor, crente ao se entregar a atividades que pressupõem crença e pronto para batalha ao marchar em ordem unida.
Vejamos um exemplo. Um homem recentemente promovido a oficial, principalmente se subiu na hierarquia a partir da graduação mais baixa, a principio se sentirá Pelo menos levemente embaraçado com as continências que agora recebe dos praças que encontra. É provável que lhes responda de maneira amistosa, quase como se pedisse desculpas. Os novos distintivos em sua farda ainda são coisas que ele simplesmente colocou ali, quase como um disfarce. Na verdade, o novo oficial poderá até dizer a si mesmo e a outras pessoas que no fundo ele ainda é a mesma pessoa, que simplesmente adquiriu novas responsabilidades (entre as quais, en passant, o dever de aceitar as continências dos subalternos). Não é provável que essa atitude dure muito. A fim de desempenhar seu novo papel de oficial, nosso homem tem de manter uma certa atitude — a qual tem implicações bastante definidas. Apesar da conversa mole a esse respeito, habitual nos chamados exércitos democráticos,
como o americano, uma das implicações fundamentais é a de que um oficial é um superior, com direito a obediência e respeito, com base nessa superioridade. Toda continência prestada por um inferior hierárquico é um ato de obediência, recebido como coisa natural pelo homem que a retribui. Assim, a cada continência prestada e aceita (juntamente, é claro, com uma centena de outros atos cerimoniais que realçam sua nova posição), fortifica-se a convicção de nosso oficial — e suas, por assim dizer, premissas ontológicas. Ele não só age como oficial, como sente-se oficial. Terminaram o embaraço, a atitude de desculpas, o meio-sorriso tranqüilizador. Se em alguma ocasião um praça lhe prestar continência sem a dose adequada de entusiasmo ou mesmo cometer o ato impensável de não lhe prestar continência, o oficial não determinará apenas uma punição por violação do regulamento militar. Será levado com todas as fibras de seu ser a exigir reparação de uma ofensa contra a ordem normal de seu universo.
E' importante acentuar nesse exemplo que só muito raramente esse processo é deliberado ou baseado em reflexão. O oficial não se sentou e imaginou todas as coisas que deveriam acompanhar seu novo papel, inclusive as coisas que deveria sentir. A força do processo está justamente em seu caráter inconsciente, reflexo. Ele se transformou em oficial quase tão naturalmente como um menino se torna um rapagão de olhos azuis, cabelos castanhos e l,80m de altura. Também não seria corretosupor que esse homem deva ser um tanto estúpido ou exceção entre seus camaradas. Pelo contrário, o excepcional é o homem que reflete sobre seus papéis (um tipo, aliás, que provavelmente seria mau oficial). Até mesmo pessoas muito inteligentes, quando em dúvida quanto a seus papéis na sociedade, se envolverão ainda mais na atividade que gera a dúvida, ao invés de se porem a refletir. O teólogo que duvida de sua fé rezará mais e frequentará a Igreja com mais assiduidade o homem de negócios tomado de escrúpulos devido à pressão que exerce sobre os empregados começa a ir ao escritório também aos domingos, e o terrorista que sofre de pesadelos apresenta-se como voluntário para execuções noturnas. E é claro que essas atitudes são perfeitamente correias. Todo papel tem sua disciplina interior, aquilo que os monásticos católicos chamariam de sua "formação". O papel dá forma e constrói tanto a ação quanto o ator. E' dificílimo fingir neste mundo. Normalmente, uma pessoa incorpora o papel que desempenha. Todo papel na sociedade acarreta uma certa identidade. Como vimos, algumas dessas identidades são triviais e transitórias, como em algumas ocupações que exigem pouca modificação no ser de seus praticantes. Não é difícil passar de lixeiro a vigia noturno. E' bem mais difícil passar de clérigo a oficial. E' muitíssimo difícil passar de negro para branco. E é quase impossível passar de homem para mulher. Essas diferenças na facilidade ou dificuldade com que se muda de papel não deve obscurecer o fato de que até mesmo as identidades que julgamos constituir a essência de nossas personalidades foram atribuídas socialmente. Da mesma forma como se adquire papéis raciais e com eles se identifica, há também papéis sexuais. Dizer "Sou homem" constitui uma proclamação de papel, tanto quanto dizer. "Sou coronel do Exército dos Estados Unidos". Estamos bem cientes fato de que uma pessoa nasce com o sexo masculino, ao passo que nem mesmo o militar mais rigoroso e desprovido de humor imagina que haja nascido com uma «guia dourada pousada em seu umbigo. Entretanto, o fato de se nascer macho, do ponto de vista biológico tem muito pouco que ver com o papel específico, definido socialmente (e, naturalmente, socialmente relativo), que motiva a declaração "Sou homem". Uma criança do sexo masculino não tem de aprender a experimentar urna ereção. Mas tem de aprender a ser agressivo, a ter ambições, a competir com outras pessoas, a desconfiar de uma atitude demasiado gentil de sua parte. O papel masculino em nossa sociedade, entretanto, exige todas essas coisas que se tem de aprender, como exige também uma identidade masculina. Ser capaz de ereção não basta — se bastasse, regimentos inteiros de psicoterapeutas estariam sem trabalho.
O significado da teoria do papel poderia ser sintetizado dizendo-se que, numa perspectiva sociológica, a identidade é atribuída socialmente, sustentada socialmente e transformada socialmente. O exemplo do homem em processo de se tornar oficial talvez baste para ilustrar a maneira como as identidades são atribuídas na vida adulta. Contudo, mesmo papéis que são muito mais fundamentais, para aquilo que os psicólogos chamariam de personalidade, do que aqueles ligados a uma determinada atividade adulta são atribuídos, de maneira muito semelhante, por um processo social. Isto já foi demonstrado abundantemente em estudos de "socialização" — o processo pelo qual uma criança aprende a ser um membro participante da sociedade.
E' provável que o trabalho teórico mais penetrante sobre este processo seja o de Mead, no qual a gênese do eu é identificada com a descoberta da sociedade. A criança descobre quem ela é ao aprender o que é a sociedade. Aprende a desempenhar os papéis que lhe são adequados, ao aprender, como diz Mead, "a assumir o papel do outro" — o que, aliás, é a função sócio-psicológica crucial da brincadeira, na qual as crianças representam vários papéis sociais e ao assim fazer descobrem o significado dos papéis que lhes são atribuídos. Todo esse aprendizado ocorre, e só pode ocorrer, em interação com outros seres humanos, quer se tratem dos pais ou de qualquer outra pessoa que eduque a criança. A criança primeiro assume papéis ligados àquelas pessoas que Mead chama de seus "outros significativos”, isto é, aquelas que lidam com ela mais de perto . cujas atitudes são decisivas para a concepção que a criança faz de si mesma. Mais tarde, a criança aprende que os papéis que representa são relevantes não só para seu círculo íntimo, como também se relacionam com as expectativas da sociedade em geral. Esse nível mais alto de abstração na resposta social é denominado por Mead de descoberta do "outro generalizado". Ou seja, não é só a mãe que espera que a criança seja boazinha, limpa e que diga a verdade; a sociedade espera a mesma coisa. Só quando surge essa concepção geral da sociedade é que a criança se torna capaz de formar uma concepção clara de si própria. Na experiência infantil, "eu" e "sociedade" são o verso e o reverso da mesma medalha.
Em outras palavras, identidade não é uma coisa pré-existente; é atribuída em atos de reconhecimento social. Somos aquilo que os outros crêem que sejamos. A mesma idéia é expressa na conhecida descrição de Cooley do eu como o reflexo de um espelho. Isto não significa, é claro, que não existam certas características com as quais um indivíduo nasce, que fazem parte de sua herança genética, a qual se manifesta em qualquer meio social. Nosso conhecimento da biologia humana ainda não nos possibilita uma imagem muito clara da extensão em que isto será verdade. Sabemos, contudo, que a margem para a formação social dentro desses limites genéticos é bastante grande. Mesmo sem dispormos de respostas cabais para as questões biológicas, podemos dizer que ser humano é ser considerado humano, da mesma forma que ser um certo tipo de homem significa ser considerado como tal. A criança privada de afeto e atenção humanas torna-se desumanizada. A criança a quem é concedido respeito vem a respeitar-se. Um menino tido como bobo torna-se bobo, da mesma forma um adulto tratado com o temor devido a um deus da guerra começa a se considerar como tal e a agir como compete a tal figura — e, na verdade, funde sua identidade com a que corresponde a essas expectativas
As identidades são atribuídas pela sociedade. E' preciso ainda que a sociedade as sustente, e com bastante regularidade. Uma pessoa não pode ser humana sozinha e, aparentemente, não pode apegar-se a qualquer identidade sem o amparo da sociedade. A auto-imagem do oficial como oficial só pode ser mantida num contexto social no qual outras pessoas estejam dispostas a reconhecê-lo nessa identidade. Se esse reconhecimento for subitamente retirado, geralmente não tardará muito para que a auto-imagem seja abalada.
Os casos de retirada radical de reconhecimento por parte da sociedade nos ensinam
muita coisa a respeito do caráter social da identidade. Por exemplo, um homem que da noite para o dia passa de cidadão livre a condenado vê-se submetido imediatamente a um ataque maciço contra a concepção que faz de si mesmo. Pode tentar desesperadamente apegar-se a essa concepção, mas na falta de outras pessoas que confirmem sua velha identidade ser-lhe-á quase impossível mantê-Ia. Com assustadora rapidez, ele descobrirá que está agindo como se espera que um condenado aja e sentindo todas as coisas que se espera que um condenado sinta. Seria errôneo encarar o processo como uma simples desintegração de personalidade. Mais correto seria considerar o fenômeno como uma reintegração de personalidade, em nada diferente, em sua dinâmica sócio-psicológica, do processo pela qual a antiga identidade foi integrada. O fato é que nosso homem era tratado por pessoas importantes que o rodeavam como um homem responsável, digno, obsequioso e de gosto apurado. Conseqüentemente, ele podia ser tudo isso. Agora, as paredes da prisão o separam das pessoas cujo reconhecimento possibilitava a demonstração dessas qualidades. Cercam-no agora pessoas que o tratam como um irresponsável, vigarista, egocêntrico e desleixado, que exige supervisão constante. As novas expectativas tipificam-se no papel de condenado, que constitui resposta a elas, da mesma forma quanto as velhas expectativas integravam-se num diferente padrão de conduta. Em ambos os casos, a identidade vem com a conduta, e esta ocorre em resposta a uma situação social específica.
Os casos extremos em que um indivíduo é despojado de maneira radical de sua antiga identidade simplesmente ilustram com mais vigor processos que ocorrem a« vida cotidiana. Nossas vidas se desenrolam dentro de uma complexa trama de reconhecimentos e não-reconhecimentos. Trabalhamos melhor quando estimulados por nossos superiores. E' difícil não sermos desajeitados numa reunião onde sabemos que as pessoas nos consideram ineptos. Tornamo-nos espirituosos quando as pessoas esperam que sejamos engraçados, e tipos interessantes quando sabemos que temos tal reputação. Inteligência, humor, habilidade manual, devoção religiosa e até potência sexual respondem com igual vivacidade às expectativas alheias. Isto torna compreensível o processo, já mencionado, segundo o qual os indivíduos preferem ligar-se a pessoas que sustentem suas auto-interpretações. Em termos sucintos, todo ato de ligação social resulta numa escolha de identidade. Inversamente, toda identidade exige ligações sociais específicas para sua sobrevivência. Os pássaros da mesma plumagem vivem juntos não por luxo, mas por necessidade. O intelectual torna-se "bitolado" depois de ser seqüestrado pelo exército. O seminarista perde cada vez mais o senso de humor ao se aproximar a época da ordenação. O operário que ultrapassa todas as quotas de trabalho verifica que passa a ultrapassá-las ainda mais depois de receber medalha da administração. O jovem ansioso com relação à sua virilidade torna-se um leão na cama depois de encontrar uma moça que o considera um avatar de Don Juan.
Para relacionarmos essas observações com o que ficou no capítulo anterior, o indivíduo se localiza na sociedade dentro de sistemas de controle social, e cada um desses sistemas contém um dispositivo de geração de identidade. Na medida que for capaz, o indivíduo tentará manipular suas ligações (e sobretudo as íntimas) de maneira a fortalecer as identidades que lhe proporcionaram satisfação do passado — casando-se com uma moça que o julgue inteligente, escolhendo amigos que o considerem simpático, escolhendo uma ocupação que o mostre como uma pessoa de futuro. Em muitos casos, naturalmente, essa manipulação não é possível. Nesse caso, tem-se de fazer o melhor possível com as identidades de que se dispõe.
Essa perspectiva sociológica do caráter da identidade nos proporciona uma compreensão mais profunda do significado humano do preconceito. Surge, então, uma percepção deprimente: o pré-julgamento afeta não só o destino externo da vítima nas mãos de seus opressores, mas também sua própria consciência, na medida em que ela é moldada pelas expectativas da sociedade. A coisa mais terrível que o preconceito pode fazer a um ser humano é fazer com
que ele tenda a se tornar aquilo que a imagem preconceituosa diz que ele é. O judeu num meio anti-semita tem de lutar com afinco para não se tornar cada vez mais parecido ao estereótipo anti-semita, da mesma forma que o negro numa situação racista. Sintomaticamente, essa luta só terá possibilidade de êxito se o indivíduo for protegido de sucumbir (ao programa traçado pelo preconceito para sua personalidade) por aquilo a que chamaríamos de contra-reconhecimento, por parte de membros de sua comunidade imediata. O mundo gentio poderia ver um homem como apenas mais um judeu desprezível sem importância, e tratá-lo como tal, mas esse não-reconhecimento de seu valor pode ser neutralizado pelo contra-reconhecimento dentro da própria comunidade judaica como, digamos, o maior especialista no Talmude na Letônia.
Em vista da dinâmica sócio-psicológica desse mortífero jogo de reconhecimentos, não surpreende que o problema da "identidade judaica" só tenha surgido entre os modernos judeus ocidentais depois que a assimilação na sociedade judaica começou a debilitar o poder da própria comunidade judaica para atribuir identidades alternativas a seus membros, em oposição às identidades a eles atribuídas pelo anti-semitismo. Quando um indivíduo é obrigado a se ver refletido num espelho construído e modo a refletir uma imagem deformada, ele tem de procurar freneticamente outros homens com outros espelhos, pois de outra forma chegará a esquecer que um dia já teve outro rosto. Para usarmos palavras um pouco diferentes, a dignidade humana é uma questão de permissão social.
O mesmo relacionamento entre sociedade e identidade pode ser visto nos casos em que, por um motivo ou outro, a identidade de um indivíduo é mudada drasticamente. A transformação da identidade, tanto quanto sua gênese e sua manutenção, constitui um processo social. Já mostramos como qualquer reinterpretação do passado, qualquer "alternação" de uma auto-imagem para outra, exige a presença de um grupo que conspire para provocar a metamorfose. Aquilo que os antropólogos chamam de rito de passagem envolve o repúdio de uma antiga identidade (digamos, ser criança) e a iniciação numa nova identidade (como a de adulto). As sociedades modernas possuem ritos de passagem mais brandos, como a instituição do noivado, pela qual o indivíduo é gentilmente levado, por uma conspiração de todos os envolvidos, a transpor a linha divisória entre a liberdade do celibato e o cativeiro do casamento. Não fosse essa instituição, um número muito maior de pessoas seria tomado de pânico ao último momento, diante a enormidade do passo que estão prestes a dar.
Já vimos também como a "alternação" transforma identiades em situações altamente estruturadas como a educação religiosa e a psicanálise. Tomando novamente esta última como exemplo oportuno, ele envolve uma tensa situação social em que o indivíduo é levado a repudiar sua antiga concepção de si mesmo e assumir uma nova identidade, a qual foi programada para ele na ideologia psicanalista. Aquilo que os psicanalistas chama de “transferência”, a intensa relação entre analista e analisando, consiste essencialmente na criação de um meio social artificial dentro do qual possa ocorrer a alquimia da transformação, ou seja, dentro do qual essa alquimia possa tornar-se plausível ao indivíduo. Quanto mais durar a relação e quanto mais intensa se tornar, mais o indivíduo se liga à sua nova identidade. Finalmente ao ser "curado", essa nova identidade já se tornou realmente aquilo que ele é. Portanto, não há por que negar com uma gargalhada marxista, a afirmação do psicanalista de que seu tratamento será mais eficiente se o paciente o visitar com freqüência, durante muito tempo, e lhe pagar honorários consideráveis. Conquanto seja óbvio que isto coincide com o interesse econômico do analista, é bem plausível sociologicamente que a atitude esteja factualmente correta. O que a psicanálise faz é na verdade a construção de uma nova identidade. A ligação do indivíduo a essa nova identidade aumentará evidentemente na proporção direta do tempo, da intensidade e do investimento financeiro que ele aplicou em sua construção. E' claro que sua capacidade de rejeitar toda a história como uma impostura se tornará mínima depois de ele haver investido vários anos de sua vida e uma quantia astronômica de dinheiro.
O mesmo tipo de meio "alquímico" é criado em situações de "terapia de grupo". A recente popularidade deste método na psiquiatria americana não pode também ser interpretada simplesmente em bases econômicas. Ela tem sua base sociológica no princípio perfeitamente correto de que as pressões de grupo atuam efetivamente para fazer o indivíduo aceitar a nova imagem que lhe é proporcionada. Erving Goffman, sociólogo contemporâneo, fez uma descrição vívida da maneira como essas pressões atuam no contexto de um hospital de doenças mentais, com os pacientes finalmente "cedendo" à interpretação psiquiátrica de sua existência que constitui o quadro de referência comum do grupo "terapêutico".
O mesmo processo tem lugar sempre que todo um grupo de indivíduos tem de ser "quebrado" e levado a aceitar uma nova definição de si mesmos. Acontece no treinamento básico dos recrutas de um exército, e com muito mais intensidade no treinamento de pessoal para carreira permanente nas forças armadas, como nas militares. Acontece nos programas de doutrinação e formação de funcionários para organizações totalitárias como as SS nazistas ou a elite do Partido Comunista. Recentemente, adquiriu precisão científica nas técnicas de "lavagem cerebral" empregadas em prisioneiros das polícias secretas totalitárias. A violência desses métodos em relação às iniciações mais rotineiras da sociedade, deve ser explicada sociologicamente em termos do grau radical de transformação de identidade que é procurado e da necessidade funcional, nesses casos, de que a aquisição da nova identidade esteja à prova de novas "alternações".
Quando levada às suas conclusões lógicas, a teoria do papel faz muito mais que simplesmente nos proporcionar uma taquigrafia conveniente para a descrição de várias atividades sociais. Ela nos oferece uma antropologia sociológica, isto é, uma visão do homem baseada em sua existência na sociedade. Essa visão nos mostra que o homem representa papéis dramáticos no grande drama da sociedade e que, falando-se sociologicamente, ele é as máscaras que tem de usar para representar. Além disso, a pessoa aparece agora num contexto dramático, fiel à sua etimologia (persona, o termo técnico com que se designa as máscaras dos atores no teatro clássico). A pessoa é percebida como um repertório de papéis, cada um dos quais adequadamente equipado com uma determinada identidade. O âmbito da pessoa individual pode ser medido pelo número de papéis que é capaz de desempenhar. A biografia da pessoa se nos afigura agora como uma seqüência ininterrupta de desempenhos num palco, para diferentes platéias, às vezes exigindo mudanças totais de roupagens, sempre exigindo que o ator seja o personagem.
Tal visão sociológica desafia muito mais radicalmente que a maioria as teorias psicológicas a maneira como habitualmente nos vemos. Desafia radicalmente um dos mais caros pressupostos acerca do "eu" — sua continuidade. Visto sociologicamente, o "eu" deixa de ser uma entidade objetiva, sólida, que se transfere de uma situação para outra. Será um processo, criado e recriado continuamente em cada situação social de que uma pessoa participa, mantido coeso pelo tênue fio da memória Em nossa análise da reinterpretação do passado vimos quão tênue é esse fio. Tampouco é possível, dentro dessa estrutura interpretativa, buscar no inconsciente o conteúdo "real" da personalidade, uma vez que, como já vimos, o presuntivo ego inconsciente está tão sujeito à produção social quanto o chamado ego consciente. Em outras palavras, o homem não é também um ser social; é social em todos os aspectos de seu ser aberto à investigação empírica. Portanto, ainda falando-se sociologicamente, se alguém perguntar quem é "realmente" um indivíduo nesse caleidoscópio de papéis e identidades, só se pode responder através da enumeração das situações em que ele é uma coisa e das situações em que é outra.
Ora, é claro que tais transformações não podem ocorrer ad infinitum e que algumas são mais fáceis que outras. Um indivíduo se habitua a tal ponto com certas identidades que, mesmo quando sua situação social muda, ele encontra dificuldade para acompanhar as novas expectativas. Isto é demonstrado com toda clareza pelas dificuldades enfrentadas por indivíduos saudáveis e ativos quando obrigados a se aposentar. A capacidade de transformação da personalidade depende não só de seu contexto social, como também do grau de seu hábito a identidades anteriores e talvez também de certos traços genéticos. Conquanto essas modificações em nosso modelo se façam necessárias a fim de evitar uma radicalização de nossa posição, elas não reduzem apreciavelmente a descontinuidade da personalidade, revelada pela análise sociológica.
Se este modelo antropológico não muito edificante lembra outro seria o empregado na psicologia do budismo primitivo na índia, na qual a personalidade era comparada a uma longa fileira de velas, cada uma das quais acende o pavio da seguinte e se extingue. Os psicólogos budistas usavam essa imagem para desacreditar a idéia hindu da transmigração da alma, pretendendo dizer com o símile que não existe nenhuma entidade que passe de uma vela para outra. Entretanto, a mesma se ajusta muito bem a nosso modelo antropológico.
Tudo isto poderia deixar a impressão de que na verdade não existe diferença essencial entre a pessoa comum e aquelas acometidas pelo distúrbio que a psiquiatria chama de "personalidade múltipla". Desde que se acentuasse o adjetivo "essencial", talvez o sociólogo concordasse com isto. A diferença prática, contudo, é que para as pessoas "normais" (isto é, aquelas assim consideradas pela sociedade) há fortes pressões no sentido de mostrarem coerência nos vários papéis que desempenham e nas identidades que os acompanham. Tais pressões são externas e internas. Externamente, os outros atores com quem se praticam os jogos sociais, e de cujo reconhecimento dependem os papéis da própria pessoa, exigem que esta apresente ao mundo uma imagem razoavelmente coerente. Um certo grau de discrepância de papéis poderá ser permitido, mas se certos limites de tolerância forem ultrapassados a sociedade retirará seu reconhecimento ao indivíduo em questão, definindo-o como uma aberração moral ou psicológica. Assim, a sociedade permitirá que um indivíduo seja um déspota no escritório e um serve no lar, mas não lhe permitirá personificar um oficial de polícia e usar as roupas designadas para o sexo oposto. A fim de permanecer dentro dos limites fixados para suas pantomimas, o indivíduo talvez tenha de recorrer a manobras complicadas para garantir uma segregação de papéis. O papel imperial no escritório será ameaçado pelo aparecimento da esposa numa reunião da diretoria, ou o papel de uma pessoa num círculo onde é tida como exímia narradora é ameaçado pela intrusão de um membro do outro círculo onde narrador é tipificado como um sujeito que nunca abre a boca sem meter os pés pelas mãos. Essa segregação de papéis torna-se cada vez mais possível em civilização urbana contemporânea, com sua anonimidade e seus rápidos meios de transporte, embora persista o perigo de que pessoas com imagens contraditórias de si mesmas subitamente tropecem uma na outra e façam periclitar suas mútuas representações. Esposa e secretária poderiam encontrar-se para tomar um café e em sua conversa pulverizar as imagens do imperador no escritório e do servo no lar. Nesse ponto, sem dúvida será necessário um psicoterapeuta para juntar os cacos do indivíduo.
Há também pressões internas no sentido de coerência, talvez baseadas em profundíssimas necessidades psicológicas do indivíduo de se ver como uma totalidade. Até mesmo o ator urbano contemporâneo, que representa papéis mutuamente irreconciliáveis em diferentes áreas de sua vida poderá talvez sentir tensões internas, embora possa controlar as externas mediante a cuidadosa separação de suas diversas mises en scène. Para evitar tais ansiedades, as pessoas geralmente segregam sua consciência, bem como sua conduta. Não queremos dizer com isto que elas "reprimam" suas identidades discrepantes para algum "inconsciente", pois dentro de nosso modelo temos todos os motivos para suspeitar de tais conceitos. Queremos dizer que elas focalizam sua atenção apenas naquela identidade particular de que, por assim dizer, necessitam no momento. As outras identidades são esquecidas enquanto durar essa cena específica. Este processo poderá talvez ser ilustrado pela maneira como atos sexuais desaprovados pela sociedade ou atos moralmente questionáveis de qualquer espécie são segregados na consciência. O homem que pratica, por exemplo, masoquismo homossexual possui uma identidade cuidadosamente construída e guardada apenas para essas ocasiões. Quando a ocasião termina, ele devolve a identidade na portaria, por assim dizer, e volta para casa como pai afetuoso, marido responsável e talvez até amante impetuoso de sua mulher. Da mesma forma, o juiz que sentencia um réu à pena de morte segrega a identidade com a qual assim age do resto de sua consciência, na qual é um ser humano bondoso, tolerante e sensível. O comandante do campo de concentração nazista que escreve cartas sentimentais aos filhos não passa de um exemplo extremo de algo que ocorre continuamente na sociedade.
O leitor erraria redondamente se julgasse que lhe estamos apresentando uma imagem da sociedade na qual todos tramam, conspiram e deliberadamente vestem disfarces para enganar-se mutuamente. Pelo contrário, a representação de papéis e os processos formadores de identidade são geralmente irrefletidos e não planejados, quase automáticos. As necessidades psicológicas de coerência da auto-imagem a que nos referimos garantem isto. A fraude deliberada exige um grau de autocontrole psicológico de que poucas pessoas são capazes. E' por isso que a insinceridade é fenômeno relativamente raro. A maioria das pessoas é sincera, porque este é o caminho mais fácil, psicologicamente. Isto é, elas acreditam no que representam, esquecem convenientemente a representação anterior e seguem pela vida contentes, convictas de estarem à altura de todas as expectativas. A sinceridade é a consciência do homem que se empolga com sua própria representação. Ou, como se expressou David Riesman, o homem sincero é aquele que acredita em sua própria propaganda. Em vista da dinâmica sócio-psicológica que acabamos de analisar, é muito provável que os assassinos nazistas sejam sinceros ao se descrever como burocratas encarregados de certas tarefas desagradáveis, que realmente abominavam, sendo talvez incorreto supor que eles só digam isso para ganhar a simpatia de seus juizes. Seu remorso humanitário será provavelmente tão sincero quanto sua passada crueldade. Como observou o romancista austríaco Robert Musil, no coração de todo assassino há um ponto em que ele é eternamente inocente. As estações da vida se sucedem, e uma pessoa tem de mudar de rosto como muda de roupa. No momento não estamos interessados nos problemas psicológicos ou no significado ético dessa "falta de caráter". Só queremos frisar que este é o procedimento habitual.
Para relacionarmos o que acabamos de dizer sobre a teoria dos papéis com o que ficou dito no capítulo precedente a respeito dos sistemas de controle, reportamo-nos àquilo que Hans Gerth e C. Wright Mills chamaram de "seleção de pessoas". Toda estrutura social seleciona as pessoas de que necessita para seu funcionamento e elimina aquelas que de uma maneira ou de outra não servem. Se não houver pessoas a serem selecionadas, elas terão de ser inventadas — ou melhor, serão produzidas de acordo com as especificações necessárias. Dessa forma, através de seus mecanismos de socialização e "formação", a sociedade manufatura o pessoal de que necessita para funcionar. O sociólogo vira de cabeça para baixo a idéia comum de que certas instituições surgem porque existem pessoas em disponibilidade. Pelo contrário, guerreiros ferozes surgem porque há exércitos a serem enviados a batalhas, homens piedosos porque há igrejas a construir, eruditos porque há universidades onde lecionar e assassinos porque há crimes a cometer. Não é correto dizer que cada sociedade tem os homens que merece. Antes, cada sociedade produz os homens de que necessita. Podemos tirar algum consolo do fato de que este processo de produção às vezes enfrenta dificuldades técnicas. Veremos mais tarde que, além disso, ele pode ser sabotado. No momento, contudo, podemos constatar que a teoria dos papéis e suas percepções concomitantes acrescentam uma importante
dimensão à nossa perspectiva sociológica da existência humana.
Se a teoria dos papéis nos proporciona idéias vívidas sobre a presença da sociedade no homem, idéias semelhantes podem ser obtidas de uma outra direção muito diferente — a chamada sociologia do conhecimento. Ao contrário da teoria dos papéis, a sociologia do conhecimento tem origem europeia. O termo foi usado pela primeira vez na década de 20 pelo filósofo alemão Max Scheler. Outro pensador europeu, Karl Mannheim, que passou os últimos anos de sua vida na Inglaterra, foi um dos que despertaram a atenção do pensamento anglo-saxônico para a nova disciplina. Não cabe no escopo deste livro esmiuçar as interessantes origens intelectuais da sociologia do conhecimento, que remontam a Marx, Nietzsche e ao historicismo alemão. A sociologia do conhecimento entra em nosso raciocínio para demonstrar que, tanto quanto os homens, as idéias têm localização social. Na verdade, isto pode servir como definição da disciplina para nossos propósitos: a sociologia do conhecimento trata da localização social das idéias.
Com mais clareza que qualquer outro ramo da sociologia, a sociologia do conhecimento elucida o que se quer dizer ao afirmar que o sociólogo é o homem que pergunta a todo instante: "Quem disse?" Ela rejeita a idéia de que o pensamento ocorra isolado do contexto social dentro do qual determinados homens pensam sobre determinadas coisas. Mesmo no caso de idéias muito abstratas que aparentemente têm pouquíssima conexão social, a sociologia do conhecimento tenta traçar a linha que une o pensamento, seu autor e o mundo social deste. Isto pode ser visto com toda facilidade nos casos em que o pensamento serve para legitimizar uma determinada situação social, ou seja, quando ele a explica, justifica e santifica.
Suponhamos um exemplo simples. Digamos que numa sociedade primitiva algum alimento necessário só possa ser obtido viajando-se por mares traiçoeiros, infestados de tubarões. Duas vezes por ano, os homens da tribo partem para buscá-lo em suas precárias canoas. Suponhamos que as convicções religiosas dessa sociedade incluam um artigo de fé segundo o qual todo homem que deixar de participar dessa expedição perderá sua virilidade, exceto os sacerdotes, cuja virilidade é mantida por seus sacrifícios diários aos deuses. Essa convicção cria uma motivação para aqueles que se arriscam na viagem perigosa e proporciona simultaneamente uma legitimação para os sacerdotes, que ficam sempre no bem-bom. E' desnecessário acrescentar que é bem provável que foram os sacerdotes quem inventaram a teoria. Em outras palavras, suspeitaremos que estamos diante de uma ideologia sacerdotal. Entretanto, isto não significa que ela não seja funcional para a sociedade como um todo — afinal de contas, alguém tem de ir, pois de outra forma sobrevirá a fome.
Falamos que existe uma ideologia quando uma certa idéia atende a um interesse da sociedade. Com muita freqüência, embora nem sempre, as ideologias destorcem sistematicamente a realidade social com o intuito de sobressair onde isto lhes interessa. Ao examinar os sistemas de controle estabelecidos por grupos ocupacionais já vimos a maneira como as ideologias podem legitimar as atividades de tais grupos. O pensamento ideológico, todavia, é capaz de abranger coletividades humanas muito maiores. Por exemplo, a mitologia racial do Sul dos Estados Unidos serve para legitimar um sistema social praticado por milhões de seres humanos. A ideologia da "livre empresa" serve para camuflar as atividades monopolísticas de grandes companhias americanas, cuja única característica que têm em comum com o capitalista ao velho estilo é a disposição constante de fraudar o público. A ideologia marxista, por sua vez, serve para legitimar a tirania praticada pela máquina do Partido Comunista, cujos interesses estão para o de Karl Marx assim como os de Elmer Gentry estavam para os do Apóstolo Paulo. Em cada um desses casos, a ideologia tanto justifica o que é feito pelo grupo cujo interesse é atendido, como interpreta a realidade social de maneira a tornar a justificação plausível. Essa interpretação muitas vezes parece extravagante a quem está de fora e "não entende o problema" (isto é, que não tem interesses a defender). O racista americano é capaz de afirmar ao mesmo tempo que as mulheres brancas têm profunda repugnância ao mero pensamento de relações sexuais com um negro, e que a mais leve sociabilidade inter-racial levará diretamente a tais relações sexuais. E o gerente de uma indústria insistirá em que suas atividades tendentes a manipular preços são realizadas em defesa do mercado livre. E o funcionário do Partido Comunista arranjará uma explicação para provar que a limitação de escolha eleitoral a candidatos aprovados pelo partido constitui expressão de verdadeira democracia.
Convém ressaltar mais uma vez que geralmente as pessoas que manifestam essas opiniões estão sendo absolutamente sinceras. O esforço moral necessário para mentir deliberadamente está além da maioria das pessoas. E' muito mais fácil iludir a si próprio. Por conseguinte, é importante distinguir o conceito de ideologia dos conceitos de mentira, fraude, propaganda ou prestidigitação. O mentiroso, por definição, sabe que está mentindo. O ideólogo, não. Não nos interessa neste ponto perguntar qual dos dois é eticamente superior. Desejamos apenas acentuar ainda uma vez a maneira irrefletida e não planejada como a sociedade normalmente funciona. A maioria das teorias de conspiração exageram grosseiramente a previdência intelectual dos conspiradores.
As ideologias também podem funcionar "latentemente", para usarmos a expressão de Merton em outro contexto. Voltemos mais uma vez ao Sul dos Estados Unidos como exemplo. Uma das coisas que ele tem de interessante é a coincidência geográfica entre o Cinturão Negro e o Cinturão da Bíblia. Isto é, aproximadamente a mesma área que pratica o sistema racial sulista em sua plena pureza apresenta também a maior concentração de protestantismo ultraconservador, fundamentalista. Pode-se explicar essa coincidência historicamente, mostrando-se o isolamento do protestantismo sulista em relação às correntes mais amplas do pensamento religioso desde os grandes cismas denominacionais, devido à questão escravagista, antes da Guerra da Secessão. Essa coincidência poderia ser também interpretada como expressão de dois aspectos diferentes de barbárie intelectual. Não refutaríamos nenhuma dessas explicações, mas argumentaríamos que uma interpretação sociológica em termos de funcionalidade ideológica daria uma visão melhor do fenômeno.
O fundamentalismo protestante, conquanto obcecado pela idéia de pecado, tem um conceito curiosamente limitado de sua extensão. Os pregadores revivalistas que vociferam contra a perversidade do mundo atêm-se invariavelmente numa gama um tanto limitada de transgressões morais — fornicação, embriaguez, dança, jogo, pragas. Na verdade, dão tanta ênfase à primeira dessas transgressões que na linguagem comum do moralismo protestante o termo "pecado" é quase sinônimo do termo mais específico "ofensa sexual". Diga-se o que se disser a respeito desse rol de atos perniciosos, todos eles têm em comum seu caráter essencialmente privado. Na verdade, se um pregador revivalista chega a mencionar questões públicas, será geralmente em termos da corrupção privada dos detentores de cargos públicos. As autoridades do governo roubam, o que é mau. Também fornicam, bebem e jogam, o que presumivelmente ainda é pior. Ora, a limitação do conceito de ética cristã a delitos pessoais tem funções óbvias numa sociedade cujas organizações sociais fundamentais são dúbias, para se dizer o mínimo, quando confrontadas com certos princípios do Novo Testamento e com o credo igualitário da nação que nele acredita ter suas raízes. O conceito privado de moralidade do fundamentalismo protestante concentra atenção nas áreas de conduta que são irrelevantes para a manutenção do sistema social, e desvia a atenção daquelas áreas onde uma inspeção ética criaria tensões para o perfeito funcionamento do sistema. Em outras palavras, o fundamentalismo protestante é ideologicamente funcional para a manutenção do sistema social do sul dos Estados Unidos.
Não é necessário irmos até o ponto em que ele legitima diretamente o sistema, como nos casos em que a segregação racial é proclamada como uma ordem natural ditada por Deus. No entanto, mesmo na ausência de tal legitimação "manifesta", as convicções religiosas em questão funcionam "latentemente" para manter o sistema.
Embora a análise das ideologias ilustre claramente o que se entende por localização social das idéias, seu âmbito ainda é muito estreito para demonstrar o pleno significado da sociologia do conhecimento. Esta disciplina não trata exclusivamente das idéias que servem a determinados interesses ou que deturpam a realidade social. Ao invés disso, a sociologia do conhecimento reivindica jurisdição sobre todo o reino do pensamento, não, é claro, considerando-se como árbitro de validade (o que seria megalomaníaco) mas sim na medida em que qualquer pensamento está fundado na sociedade. Não queremos dizer com isto (como diria um intérprete marxista) que todo pensamento humano deva ser considerado como "reflexo" direto de estruturas sociais, nem tampouco que as idéias devam ser vistas como inteiramente impotentes para traçar o rumo dos acontecimentos. O que queremos dizer é que todas as ideias são examinadas cuidadosamente para se determinar sua localização na existência social das pessoas que as cogitaram. Nessa medida, pelo menos, é correio afirmar que a sociologia do conhecimento seja de tendência antiidealisía.
Toda sociedade pode ser vista em termos de sua estrutura social e de seus mecanismos sócio-psicológicos, e também em termos da cosmovisão que atua como o universo comum habitado por seus membros. As cosmo-visões variam socialmente, de uma sociedade para outra e dentro de diferentes setores da mesma sociedade. E' nesse sentido que se diz que um chinês "vive num mundo diferente" do mundo de um ocidental. Para ficarmos com este exemplo por um instante, Mareei Granet, sinólogo francês fortemente influenciado pela sociologia durkheimiana, analisou o pensamento chinês exatamente sob essa perspectiva de investigar seu "mundo diferente". A diferença, naturalmente, é patente em questões como filosofia política, religião ou ética. Entretanto, segundo Granet, diferenças fundamentais podiam também ser encontradas em categorias como tempo, espaço e número. Afirmativas muito semelhantes têm sido feitas em análises de outras espécies, como as que comparam os "mundos" da antiga Grécia e do antigo Israel, ou o "mundo" do hinduismo tradicional com o do moderno Ocidente.
A sociologia da religião constitui uma das áreas mais fecundas para esse tipo de investigação, em parte talvez porque nela o paradoxo da localização social aparece de forma particularmente incisiva. Parece de todo impróprio que idéias concernentes aos deuses, ao cosmos dos homens, presos a todas as relatividades humanas de geografia e história. Isto tem constituído uma das pedras de tropeço emocionais da erudição bíblica, sobretudo quando esta tenta descobrir o que chama de Sitz im Leben (literalmente, "sítio na vida" — quase a mesma coisa a que demos o nome de localização social) de fenômenos religiosos particulares. Uma coisa é discutir as afirmações eternas da fé cristã, e outra muito diferente é investigar como essas afirmações podem estar relacionadas às frustrações, ambições e ressentimentos, muito temporais, de determinadas camadas sociais nas cidades poliglotas do Império Romano aonde os primeiros missionários cristãos levaram sua mensagem. Mais que isso, porém, o próprio fenômeno da religião em si pode ser localizado socialmente em termos de funções específicas, tais como legitimação da autoridade política e abrandamento de rebelião social (aquilo que Weber chamou de "teodicéia do sofrimento" — ou seja, a maneira como a religião empresta sentido ao sofrimento, de modo a convertê-lo, de fonte de revolução a veículo de redenção). A universalidade da religião, longe de constituir prova de sua validade metafísica, é explicável em termos de tais funções sociais. Ademais, as mudanças dos padrões religiosos no decurso da história também podem ser interpretados em termos sociológicos.
Tomemos como exemplo a distribuição de filiações religiosas no mundo ocidental contemporâneo. Em muitos países ocidentais, a freqüência à igreja pode ser correlacionada quase rigorosamente com classes sociais, de modo que, por exemplo, a atividade religiosa constitui uma das marcas de status de classe média, ao passo que a abstenção de tal atividade caracteriza a classe proletária. Em outras palavras, parece haver uma relação entre a fé de uma pessoa, digamos, na Trindade (ou pelo menos demonstrações exteriores dessa fé) e sua renda anual — abaixo de certo nível de renda parece que tal fé perde toda plausibilidade, ao passo que acima desse nível ela se torna coisa natural. A sociologia do conhecimento indagará como surgiu essa espécie de relação entre estatística e salvação. As respostas, inevitavelmente, serão sociológicas — em termos da funcionalidade da religião nesse ou naquele meio social. O sociólogo não poderá, naturalmente, fazer quaisquer declarações sobre questões teológicas em si, mas será capaz de demonstrar que essas questões raramente têm sido transacionadas num vácuo social.
Para voltarmos a um exemplo anterior, o sociólogo não será capaz de dizer às pessoas se lhes convém ligar-se ao fundamentalismo protestante ou a uma versão menos conservadora dessa fé, mas poderá mostrar-lhes como a escolha funcionará socialmente. Tampouco estará em condições de decidir para as pessoas se devem fazer batizar seus filhos ou se devem protelar esse ato, mas poderá informá-las qual a expectativa quanto a isso nesse ou naquele estrato social. Tampouco ele poderá sequer estimar a plausibilidade de uma vida além-túmulo, mas poderá informar em que carreiras profissionais será conveniente a urna pessoa pelo menos simular tal convicção.
Além dessas questões da distribuição social de religiosidade, alguns sociólogos contemporâneos (como, por exemplo, Helmut Schelsky e Thomas Luckmann) têm indagado se os tipos de personalidade produzidos pela moderna civilização industrial permitem a continuação dos padrões religiosos tradicionais e se, por vários motivos sociológicos e sócio-psicológicos, o mundo ocidental talvez já não esteja num estágio pós-cristão. A análise dessas questões, entretanto, nos afastaria de nossa linha de raciocínio. Os exemplos religiosos deverão ter sido suficientes para indicar a maneira como a sociologia do conhecimento localiza as idéias na sociedade.
O indivíduo, por conseguinte, adquire socialmente sua cosmovisão quase da mesma forma como adquire seus papéis e sua identidade. Em outras palavras, tanto quanto suas ações, suas emoções e sua auto-interpretação são pré-definidas para ele pela sociedade, da mesma forma que sua atitude cognitiva em relação ao universo que o rodeia. Alfred Schuetz expressou este falo em sua frase "mundo aceito sem discussão" — o sistema de pressupostos (aparentemente óbvios e que se auto-ratificam) com relação ao mundo que cada sociedade engendra no curso de sua história. Essa cosmovisão determinada socialmente já está, pelo menos em parte, incorporada na linguagem usada pela sociedade. E' possível que certos lingüistas tenham exagerado a importância desse único fator na criação de qualquer cosmovisão específica, mas restam poucas dúvidas de que a linguagem de uma pessoa pelo menos ajuda a dar forma à sua atitude para com a realidade. Além disso, obviamente. a linguagem não é escolhida por nós, sendo-nos imposta pelo grupo social incumbido de nossa socialização inicial. A sociedade pré-define para nós esse mecanismo simbólico fundamental com o qual apreendemos o mundo, ordenamos nossa experiência e interpretamos nossa própria existência.
Da mesma forma, a sociedade fornece nossos valores, nossa lógica e o acervo de informação (ou desinformação) que constitui nosso "conhecimento". Raríssimas pessoas, e mesmo essas apenas em relação a fragmentos dessa cosmovisão, estão em condições de reavaliar aquilo que lhes foi assim imposto. Na verdade, não sentem nenhuma necessidade de reavaliação porque a cosmovisão em que foram socializados lhes parece óbvia. Uma vez que ela também será considerada assim por quase todos os membros de sua própria sociedade, essa cosmovisão ratifica-se, valida-se. Sua "prova" está na experiência reiterada de outros homens
que também a tomam como coisa natural, assentada. Enunciemos essa perspectiva da sociologia do conhecimento numa proposição sucinta: a realidade é construída socialmente. Com essa formulação, a sociologia do conhecimento ajuda a sintetizar a afirmativa de Thomas sobre o poder da definição social e lança mais luz sobre a imagem sociológica da natureza precária da realidade.
A teoria dos papéis e a sociologia do conhecimento representam elementos muito diferentes do pensamento sociológico. Os importantes subsídios que fornecem a respeito dos processos sociais ainda não foram integrados teoricamente, exceto talvez no sistema sociológico contemporâneo de Talcott Parsons, demasiado complexo para ser exposto aqui. Contudo, uma conexão relativamente simples entre as duas abordagens é proporcionada pela chamada teoria do grupo de referência, outra contribuição americana. Utilizado pela primeira vez por Herbert Hyman na década de 40, o conceito do grupo de referência foi desenvolvido por vários sociólogos americanos (entre os quais Robert Merton e Tamotsu Shibutani). Tem sido muito útil na pesquisa do funcionamento de organizações de vários tipos, tais como militares e industriais, embora essa utilização não nos interesse aqui.
Já se fez distinção entre os grupos de referência de que uma pessoa faz parte e aqueles para os quais ela orienta suas ações. Este último tipo atenderá a nossos objetivos. Um grupo de referência, nesse sentido, é a coletividade cujas opiniões, convicções e rumos de ação são decisivos para a formação de nossas próprias opiniões, convicções e rumos de ação. O grupo de referência nos proporciona um modelo com o qual nos podemos comparar continuamente. Especificamente, ele nos oferece um determinado ponto de vista sobre a realidade social, que poderá ou não ser ideológico no sentido anteriormente mencionado, mas que em qualquer caso será parte e parcela de nossa participação nesse grupo particular.
Certa vez a revista The New Yorker publicou um cartum mostrando um jovem universitário bem vestido falando a uma moça desgrenhada que desfila numa manifestação, portando um cartaz exigindo o fim dos testes nucleares. A legenda dizia mais ou menos: "Tenho a impressão de que não a verei hoje à noite no Clube dos Conservadores Jovens". Esta vinheta demonstra a larga gama de grupos de referência hoje disponíveis a um universitário. Qualquer estabelecimento de ensino superior, com exceção dos muitos pequenos, oferece uma ampla variedade de tais grupos. O estudante sequioso de participação poderá unir-se a qualquer número de grupos de definição política, poderá orientar-se para um bando beatnik, ligar-se a um círculo de gente-bem ou simplesmente andar de um lado para outro com o grupinho formado em torno de um professor popular. E' desnecessário dizer que, em cada um desses casos, será preciso cumprir certos requisitos em termos de vestuário e comportamento — entremear a conversa com jargão esquerdista, boicotar a barbearia local, usar paletó e gravata ou andar descalço a partir da primavera. Mas a escolha de grupo trará consigo também um conjunto de símbolos intelectuais, os quais seria conveniente exibir com um ar de fidelidade — ler a National Review ou Dissent (conforme o caso), apreciar a poesia de Allen Ginsberg, lida ao som do jazz mais dissonante possível, conhecer os nomes de batismo dos presidentes de meia dúzia de companhias em que se está de olho ou demonstrar desdém indizível por alguém que admita não conhecer os Poetas Metafísicos. O republicanismo à Ia Goldwater, o Trotskysmo, o Zen Budismo ou a Nova Critica — todas essas augustas possibilidades de Weltanschauung podem engrandecer ou estragar reuniões nos sábados à noite, envenenar as relações com os colegas de quarto ou tornar-se base de fortes alianças com pessoas que antes se evitava a todo transe. E então se descobre ser possível "ganhar" certas moças com um carro esporte e outras com John Donne. E' claro que só um sociólogo mal-intencionado poderia julgar que a escolha entre um Jaguar ou a poesia de Donne será determinada em termos de necessidade estratégica.
A .teoria do grupo de referência demonstra que a filiação ou a desafiliação normalmente traz consigo compromissos cognitivos específicos. Uma pessoa se liga a um grupo e por isso "sabe" que o mundo é isso ou aquilo. Outra troca este grupo por outro e passa a "saber" que devia estar enganada. Todo grupo a que urna pessoa se reporta proporciona um ângulo de visão privilegiado do mundo. Todo papel incorpora uma cosmovisão. Ao se escolher pessoas específicas, escolhe-se um lugar específico do mundo para viver. Se a sociologia do conhecimento nos oferece um panorama da construção social da realidade, a teoria do grupo de referência aponta-nos as muitas pequenas oficinas em que "igrejinhas" de construtores do universo fabricam seus modelos do cosmo. A dinâmica sócio-psicológica que condiciona este processo será presumivelmente a mesma que já examinamos ao analisar a teoria dos papéis — o impulso humano de ser aceito, de participar, de viver num mundo junto com outras pessoas.
Algumas das experiências realizadas por psicólogos sociais sobre a maneira como a opinião de grupo afeta até mesmo a percepção de objetos físicos dão-nos uma idéia da força irresistível desse impulso. Diante de um objeto de, digamos, 70 cm de comprimento, um indivíduo progressivamente modificará sua estimativa inicial, correta, se colocado num grupo experimental em que todos os membros afirmem terem certeza de que o comprimento real será 30 cm aproximadamente. Não é de espantar, portanto, que as opiniões grupais no tocante a questões políticas, éticas ou estéticas exerçam força ainda maior, uma vez que o indivíduo assim pressionado não pode recorrer, como último argumento, a um gabarito político, ético ou estético. Se o tentasse fazer, o grupo naturalmente negaria o gabarito. A medida de validade de um grupo é o gabarito de ignorância de outro grupo. Os critérios de canonização e amaldiçoamento são intercambiáveis. Quem escolhe seus companheiros, escolhe seus deuses.
Destacamos neste capítulo alguns elementos do pensamento sociológico que nos proporcionam uma imagem da sociedade atuando no homem, ampliando nossa anterior perspectiva do homem atuando na sociedade. Neste ponto, nossa imagem da sociedade como uma enorme prisão já não parece satisfatória, a menos que lhe acrescentemos o detalhe de grupos de prisioneiros ocupados ativamente em manter suas paredes intactas. Nosso encarceramento na sociedade já nos parece algo criado tanto por nós próprios quanto pela operação de forças externas. Uma imagem mais adequada da realidade social seria agora a de um teatro de fantoches, com a cortina se levantando e revelando as marionetes saltando nas extremidades de seus fios invisíveis, representando animadamente os pequenos papéis que lhe foram atribuídos na tragicomédia a ser encenada. Entretanto, a analogia não é bastante ampla. O Pierrô do teatro de fantoches não tem vontade nem consciência. Mas o Pierrô do palco social nada deseja senão o destino que o aguarda no cenário — e possui todo um sistema filosófico para prová-lo.
O termo chave usado pelos sociólogos para se referir aos fenômenos discutidos neste capítulo é "internalização". O que acontece na socialização é que o mundo social é internalizado pela criança. O mesmo processo, embora talvez num grau mais fraco, ocorre a cada vez que o adulto é iniciado num novo contexto social ou num novo grupo social. A sociedade, então, não é apenas uma coisa que existe "lá", no sentido durkheimiano, mas ela também existe "aqui", parte de nosso ser mais íntimo. Apenas uma compreensão da internalização dá sentido ao fato incrível de que a maioria dos controles externos funcionem durante a maior parte do tempo para a maior parte das pessoas de uma sociedade. A sociedade não só controla nossos movimentos, como ainda dá forma à nossa identidade, nosso pensamento e nossas emoções. As estruturas da sociedade tornam-se as estruturas de nossa própria consciência. A sociedade não se detém à superfície de nossa pele. Ela nos penetra, tanto quanto nos envolve. Nossa servidão para com a sociedade é estabelecida menos por conquista que por conluio. Às vezes, realmente, somos esmagados e subjugados. Com freqüência muito maior caímos na armadilha engendrada por nossa própria natureza social. As paredes de nosso cárcere já existiam antes de entrarmos em cena, mas nós a reconstruímos eternamente. Somos aprisionados com nossa própria cooperação.
A Perspectiva Sociológica — A Sociedade no Homem
No capítulo anterior talvez tenhamos dado ao leitor excelentes motivos para crer que a sociologia deva assumir o título de "ciência sinistra", atribuído à Economia. Depois de descrevermos a sociedade como uma prisão lúgubre, devemos agora mostrar ao leitor pelo menos alguns túneis pelos quais possa escapar desse sombrio determinismo. Antes disso, contudo, temos de acrescentar mais algum negrume ao quadro.
Até aqui, abordando a sociedade sobretudo segundo o aspecto de seus sistemas de controles, temos encarado o indivíduo e a sociedade como duas entidades antagônicas. A sociedade foi vista como uma realidade externa que pressiona e coage o indivíduo. Se essa imagem não for modificada, obteremos uma impressão bastante errônea da relação, ou seja, uma impressão de massas humanas constantemente forçando seus grilhões, cedendo às autoridades coatoras de dentes rilhados, sendo levadas sempre à obediência pelo medo do que poderá ocorrer se agirem de outra forma. Tanto o conhecimento ordinário da sociedade como a análise sociológica propriamente dita nos mostram que não é este o caso. Para a maioria de nós, o jugo da sociedade parece suave. Por quê? Certamente não porque o poder da sociedade seja menor do que indicamos no último capítulo. Nesse caso, por que esse poder não nos causa maior sofrimento? Já se fez referência à resposta sociológica à pergunta – porque quase sempre desejamos exatamente aquilo que a sociedade espera de nós. Queremos obedecer às regras. Queremos os papéis que a sociedade nos atribuiu. E isto, por sua vez, é possível não porque o poder da sociedade seja menor, e sim porque é muito maior do que até agora afirmamos. A sociedade determina não só o que fazemos, como também o que somos. Em outras palavras, a localização social não afeta apenas nossa conduta; ela afeta também nosso ser. Para esclarecer esse elemento essencial da perspectiva sociológica, examinaremos mais três áreas de investigação e interpretação, as da teoria do papel, a sociologia do conhecimento e a teoria do grupo de referência.
A teoria do papel foi uma criação intelectual quase inteiramente americana. Alguns de seus germes remontam a William James, mas seus pais diretos são outros dois pensadores americanos, Charles Cooley e George Herbert Mead. Não podemos pretender fazer aqui uma introdução histórica a esse fascinante setor da história intelectual. Ao invés de tentar sequer esboçar essa história, procederemos mais sistematicamente, começando a examinar a teoria do papel com outra olhada ao conceito de Thomas, a definição da situação.
O leitor se recordará que Thomas via a situação social como uma realidade estabelecida por acordo ad hoc entre aqueles que dela participam, ou, mais exatamente, entre aqueles que a definem. Do ponto de vista do participante individual, isto significa que cada situação lhe apresenta expectativas específicas e exige dele respostas específicas a essas expectativas. Como já vimos, em quase todas as situações sociais existem pressões poderosas para garantir que as respostas sejam as adequadas. A sociedade existe porque as definições da maioria das pessoas para as situações mais importantes são mais ou menos as mesmas. Os motivos do editor e do autor dessas linhas podem ser um tanto diferentes, mas as maneiras como ambos definem a situação em que este livro está sendo produzido são suficientemente similares para que a produção seja possível. Da mesma forma, numa sala de aula podem estar presentes interesses os mais díspares, alguns dos quais terão pouca relação com a atividade educacional que supostamente ali se desenrola; entretanto, na maioria dos casos estes interesses (digamos que um estudante deseja estudar a matéria lecionada, ao passo que outro simplesmente se
matricula em todos os cursos freqüentados por uma certa loura) podem coexistir numa situação sem a destruir. Em outras palavras, há uma certa margem no grau em que a resposta tem de satisfazer a expectativa para que uma situação permaneça sociologicamente viável. E' claro que será inevitável alguma forma de conflito ou desorganização social se as definições das situações forem excessivamente discrepantes — digamos, se alguns estudantes interpretarem o encontro na sala de aula como uma festa ou se um autor não tiver intenção de produzir um livro, apenas utilizando seu contrato com um editor para pressionar outro.
Embora um indivíduo médio encontre expectativas muito diferentes em diversas áreas de sua vida, as situações que produzem essas expectativas enquadram-se em certos grupos. Um estudante pode fazer dois cursos diferentes, com dois professores, em dois departamentos universitários, com consideráveis variações nas expectativas encontradas nas duas situações (digamos, formalidade ou informalidade nas relações entre professor e alunos). Não obstante, as situações serão suficientemente semelhantes entre si e a outras situações escolares anteriores para possibilitar ao estudante dar em ambas situações essencialmente a mesma resposta geral. Para usarmos outras palavras, em ambos os casos, com apenas algumas modificações, ele será capaz de desempenhar o papel de estudante. Um papel, portanto, pode ser definido como uma resposta tipificada a uma expectativa tipificada. A sociedade pré-definiu a tipologia fundamental. Usando a linguagem do teatro, do qual se derivou o conceito de papel, podemos dizer que a sociedade proporciona o script para todos os personagens. Por conseguinte, tudo quanto os atores têm a fazer é assumir os papéis que foram distribuídos antes de levantar o pano. Desde desempenhem seus papéis como estabelecido no script o drama social pode ir adiante como planejado. O papel oferece o padrão segundo o qual o indivíduo deve agir na situação. Tanto na sociedade quanto no teatro, variará a exatidão com que os papéis fornecem instruções ao ator. Tomando como exemplo os papéis ocupacionais, o papel do lixeiro envolve um padrão mínimo, ao passo que os médicos, clérigos e oficiais do exército têm de adquirir toda espécie de maneirismos característicos, hábitos de linguagem e gestos, tais como otimismo diante do doente, palavreado santarrão ou garbo militar. Contudo, seria erro grave considerar o papel apenas como um padrão regulador para ações externamente visíveis. Uma pessoa sente-se mais apaixonada ao beijar, mais humilde ao se ajoelhar e mais indignada ao sacudir o punho. Isto é, o beijo não só expressa paixão, como também a fabrica. Os papéis trazem em seu bojo tanto as ações como as emoções e atitudes a elas relacionadas. O professor que representa uma cena de sabedoria vem a se sentir sábio. O pregador passa a crer no que prega. O soldado descobre pruridos marciais em seu peito ao vestir a farda. Em cada um desses casos, embora a emoção ou atitude já existissem antes de se assumir o papel, este, inevitavelmente, reforça aquilo que já existia. Em muitos casos há Bons motivos para se acreditar que absolutamente nada antecedia, na consciência do ator, o desempenho do papel. Em outras palavras, uma pessoa se torna sábia ao ser nomeado professor, crente ao se entregar a atividades que pressupõem crença e pronto para batalha ao marchar em ordem unida.
Vejamos um exemplo. Um homem recentemente promovido a oficial, principalmente se subiu na hierarquia a partir da graduação mais baixa, a principio se sentirá Pelo menos levemente embaraçado com as continências que agora recebe dos praças que encontra. É provável que lhes responda de maneira amistosa, quase como se pedisse desculpas. Os novos distintivos em sua farda ainda são coisas que ele simplesmente colocou ali, quase como um disfarce. Na verdade, o novo oficial poderá até dizer a si mesmo e a outras pessoas que no fundo ele ainda é a mesma pessoa, que simplesmente adquiriu novas responsabilidades (entre as quais, en passant, o dever de aceitar as continências dos subalternos). Não é provável que essa atitude dure muito. A fim de desempenhar seu novo papel de oficial, nosso homem tem de manter uma certa atitude — a qual tem implicações bastante definidas. Apesar da conversa mole a esse respeito, habitual nos chamados exércitos democráticos,
como o americano, uma das implicações fundamentais é a de que um oficial é um superior, com direito a obediência e respeito, com base nessa superioridade. Toda continência prestada por um inferior hierárquico é um ato de obediência, recebido como coisa natural pelo homem que a retribui. Assim, a cada continência prestada e aceita (juntamente, é claro, com uma centena de outros atos cerimoniais que realçam sua nova posição), fortifica-se a convicção de nosso oficial — e suas, por assim dizer, premissas ontológicas. Ele não só age como oficial, como sente-se oficial. Terminaram o embaraço, a atitude de desculpas, o meio-sorriso tranqüilizador. Se em alguma ocasião um praça lhe prestar continência sem a dose adequada de entusiasmo ou mesmo cometer o ato impensável de não lhe prestar continência, o oficial não determinará apenas uma punição por violação do regulamento militar. Será levado com todas as fibras de seu ser a exigir reparação de uma ofensa contra a ordem normal de seu universo.
E' importante acentuar nesse exemplo que só muito raramente esse processo é deliberado ou baseado em reflexão. O oficial não se sentou e imaginou todas as coisas que deveriam acompanhar seu novo papel, inclusive as coisas que deveria sentir. A força do processo está justamente em seu caráter inconsciente, reflexo. Ele se transformou em oficial quase tão naturalmente como um menino se torna um rapagão de olhos azuis, cabelos castanhos e l,80m de altura. Também não seria corretosupor que esse homem deva ser um tanto estúpido ou exceção entre seus camaradas. Pelo contrário, o excepcional é o homem que reflete sobre seus papéis (um tipo, aliás, que provavelmente seria mau oficial). Até mesmo pessoas muito inteligentes, quando em dúvida quanto a seus papéis na sociedade, se envolverão ainda mais na atividade que gera a dúvida, ao invés de se porem a refletir. O teólogo que duvida de sua fé rezará mais e frequentará a Igreja com mais assiduidade o homem de negócios tomado de escrúpulos devido à pressão que exerce sobre os empregados começa a ir ao escritório também aos domingos, e o terrorista que sofre de pesadelos apresenta-se como voluntário para execuções noturnas. E é claro que essas atitudes são perfeitamente correias. Todo papel tem sua disciplina interior, aquilo que os monásticos católicos chamariam de sua "formação". O papel dá forma e constrói tanto a ação quanto o ator. E' dificílimo fingir neste mundo. Normalmente, uma pessoa incorpora o papel que desempenha. Todo papel na sociedade acarreta uma certa identidade. Como vimos, algumas dessas identidades são triviais e transitórias, como em algumas ocupações que exigem pouca modificação no ser de seus praticantes. Não é difícil passar de lixeiro a vigia noturno. E' bem mais difícil passar de clérigo a oficial. E' muitíssimo difícil passar de negro para branco. E é quase impossível passar de homem para mulher. Essas diferenças na facilidade ou dificuldade com que se muda de papel não deve obscurecer o fato de que até mesmo as identidades que julgamos constituir a essência de nossas personalidades foram atribuídas socialmente. Da mesma forma como se adquire papéis raciais e com eles se identifica, há também papéis sexuais. Dizer "Sou homem" constitui uma proclamação de papel, tanto quanto dizer. "Sou coronel do Exército dos Estados Unidos". Estamos bem cientes fato de que uma pessoa nasce com o sexo masculino, ao passo que nem mesmo o militar mais rigoroso e desprovido de humor imagina que haja nascido com uma «guia dourada pousada em seu umbigo. Entretanto, o fato de se nascer macho, do ponto de vista biológico tem muito pouco que ver com o papel específico, definido socialmente (e, naturalmente, socialmente relativo), que motiva a declaração "Sou homem". Uma criança do sexo masculino não tem de aprender a experimentar urna ereção. Mas tem de aprender a ser agressivo, a ter ambições, a competir com outras pessoas, a desconfiar de uma atitude demasiado gentil de sua parte. O papel masculino em nossa sociedade, entretanto, exige todas essas coisas que se tem de aprender, como exige também uma identidade masculina. Ser capaz de ereção não basta — se bastasse, regimentos inteiros de psicoterapeutas estariam sem trabalho.
O significado da teoria do papel poderia ser sintetizado dizendo-se que, numa perspectiva sociológica, a identidade é atribuída socialmente, sustentada socialmente e transformada socialmente. O exemplo do homem em processo de se tornar oficial talvez baste para ilustrar a maneira como as identidades são atribuídas na vida adulta. Contudo, mesmo papéis que são muito mais fundamentais, para aquilo que os psicólogos chamariam de personalidade, do que aqueles ligados a uma determinada atividade adulta são atribuídos, de maneira muito semelhante, por um processo social. Isto já foi demonstrado abundantemente em estudos de "socialização" — o processo pelo qual uma criança aprende a ser um membro participante da sociedade.
E' provável que o trabalho teórico mais penetrante sobre este processo seja o de Mead, no qual a gênese do eu é identificada com a descoberta da sociedade. A criança descobre quem ela é ao aprender o que é a sociedade. Aprende a desempenhar os papéis que lhe são adequados, ao aprender, como diz Mead, "a assumir o papel do outro" — o que, aliás, é a função sócio-psicológica crucial da brincadeira, na qual as crianças representam vários papéis sociais e ao assim fazer descobrem o significado dos papéis que lhes são atribuídos. Todo esse aprendizado ocorre, e só pode ocorrer, em interação com outros seres humanos, quer se tratem dos pais ou de qualquer outra pessoa que eduque a criança. A criança primeiro assume papéis ligados àquelas pessoas que Mead chama de seus "outros significativos”, isto é, aquelas que lidam com ela mais de perto . cujas atitudes são decisivas para a concepção que a criança faz de si mesma. Mais tarde, a criança aprende que os papéis que representa são relevantes não só para seu círculo íntimo, como também se relacionam com as expectativas da sociedade em geral. Esse nível mais alto de abstração na resposta social é denominado por Mead de descoberta do "outro generalizado". Ou seja, não é só a mãe que espera que a criança seja boazinha, limpa e que diga a verdade; a sociedade espera a mesma coisa. Só quando surge essa concepção geral da sociedade é que a criança se torna capaz de formar uma concepção clara de si própria. Na experiência infantil, "eu" e "sociedade" são o verso e o reverso da mesma medalha.
Em outras palavras, identidade não é uma coisa pré-existente; é atribuída em atos de reconhecimento social. Somos aquilo que os outros crêem que sejamos. A mesma idéia é expressa na conhecida descrição de Cooley do eu como o reflexo de um espelho. Isto não significa, é claro, que não existam certas características com as quais um indivíduo nasce, que fazem parte de sua herança genética, a qual se manifesta em qualquer meio social. Nosso conhecimento da biologia humana ainda não nos possibilita uma imagem muito clara da extensão em que isto será verdade. Sabemos, contudo, que a margem para a formação social dentro desses limites genéticos é bastante grande. Mesmo sem dispormos de respostas cabais para as questões biológicas, podemos dizer que ser humano é ser considerado humano, da mesma forma que ser um certo tipo de homem significa ser considerado como tal. A criança privada de afeto e atenção humanas torna-se desumanizada. A criança a quem é concedido respeito vem a respeitar-se. Um menino tido como bobo torna-se bobo, da mesma forma um adulto tratado com o temor devido a um deus da guerra começa a se considerar como tal e a agir como compete a tal figura — e, na verdade, funde sua identidade com a que corresponde a essas expectativas
As identidades são atribuídas pela sociedade. E' preciso ainda que a sociedade as sustente, e com bastante regularidade. Uma pessoa não pode ser humana sozinha e, aparentemente, não pode apegar-se a qualquer identidade sem o amparo da sociedade. A auto-imagem do oficial como oficial só pode ser mantida num contexto social no qual outras pessoas estejam dispostas a reconhecê-lo nessa identidade. Se esse reconhecimento for subitamente retirado, geralmente não tardará muito para que a auto-imagem seja abalada.
Os casos de retirada radical de reconhecimento por parte da sociedade nos ensinam
muita coisa a respeito do caráter social da identidade. Por exemplo, um homem que da noite para o dia passa de cidadão livre a condenado vê-se submetido imediatamente a um ataque maciço contra a concepção que faz de si mesmo. Pode tentar desesperadamente apegar-se a essa concepção, mas na falta de outras pessoas que confirmem sua velha identidade ser-lhe-á quase impossível mantê-Ia. Com assustadora rapidez, ele descobrirá que está agindo como se espera que um condenado aja e sentindo todas as coisas que se espera que um condenado sinta. Seria errôneo encarar o processo como uma simples desintegração de personalidade. Mais correto seria considerar o fenômeno como uma reintegração de personalidade, em nada diferente, em sua dinâmica sócio-psicológica, do processo pela qual a antiga identidade foi integrada. O fato é que nosso homem era tratado por pessoas importantes que o rodeavam como um homem responsável, digno, obsequioso e de gosto apurado. Conseqüentemente, ele podia ser tudo isso. Agora, as paredes da prisão o separam das pessoas cujo reconhecimento possibilitava a demonstração dessas qualidades. Cercam-no agora pessoas que o tratam como um irresponsável, vigarista, egocêntrico e desleixado, que exige supervisão constante. As novas expectativas tipificam-se no papel de condenado, que constitui resposta a elas, da mesma forma quanto as velhas expectativas integravam-se num diferente padrão de conduta. Em ambos os casos, a identidade vem com a conduta, e esta ocorre em resposta a uma situação social específica.
Os casos extremos em que um indivíduo é despojado de maneira radical de sua antiga identidade simplesmente ilustram com mais vigor processos que ocorrem a« vida cotidiana. Nossas vidas se desenrolam dentro de uma complexa trama de reconhecimentos e não-reconhecimentos. Trabalhamos melhor quando estimulados por nossos superiores. E' difícil não sermos desajeitados numa reunião onde sabemos que as pessoas nos consideram ineptos. Tornamo-nos espirituosos quando as pessoas esperam que sejamos engraçados, e tipos interessantes quando sabemos que temos tal reputação. Inteligência, humor, habilidade manual, devoção religiosa e até potência sexual respondem com igual vivacidade às expectativas alheias. Isto torna compreensível o processo, já mencionado, segundo o qual os indivíduos preferem ligar-se a pessoas que sustentem suas auto-interpretações. Em termos sucintos, todo ato de ligação social resulta numa escolha de identidade. Inversamente, toda identidade exige ligações sociais específicas para sua sobrevivência. Os pássaros da mesma plumagem vivem juntos não por luxo, mas por necessidade. O intelectual torna-se "bitolado" depois de ser seqüestrado pelo exército. O seminarista perde cada vez mais o senso de humor ao se aproximar a época da ordenação. O operário que ultrapassa todas as quotas de trabalho verifica que passa a ultrapassá-las ainda mais depois de receber medalha da administração. O jovem ansioso com relação à sua virilidade torna-se um leão na cama depois de encontrar uma moça que o considera um avatar de Don Juan.
Para relacionarmos essas observações com o que ficou no capítulo anterior, o indivíduo se localiza na sociedade dentro de sistemas de controle social, e cada um desses sistemas contém um dispositivo de geração de identidade. Na medida que for capaz, o indivíduo tentará manipular suas ligações (e sobretudo as íntimas) de maneira a fortalecer as identidades que lhe proporcionaram satisfação do passado — casando-se com uma moça que o julgue inteligente, escolhendo amigos que o considerem simpático, escolhendo uma ocupação que o mostre como uma pessoa de futuro. Em muitos casos, naturalmente, essa manipulação não é possível. Nesse caso, tem-se de fazer o melhor possível com as identidades de que se dispõe.
Essa perspectiva sociológica do caráter da identidade nos proporciona uma compreensão mais profunda do significado humano do preconceito. Surge, então, uma percepção deprimente: o pré-julgamento afeta não só o destino externo da vítima nas mãos de seus opressores, mas também sua própria consciência, na medida em que ela é moldada pelas expectativas da sociedade. A coisa mais terrível que o preconceito pode fazer a um ser humano é fazer com
que ele tenda a se tornar aquilo que a imagem preconceituosa diz que ele é. O judeu num meio anti-semita tem de lutar com afinco para não se tornar cada vez mais parecido ao estereótipo anti-semita, da mesma forma que o negro numa situação racista. Sintomaticamente, essa luta só terá possibilidade de êxito se o indivíduo for protegido de sucumbir (ao programa traçado pelo preconceito para sua personalidade) por aquilo a que chamaríamos de contra-reconhecimento, por parte de membros de sua comunidade imediata. O mundo gentio poderia ver um homem como apenas mais um judeu desprezível sem importância, e tratá-lo como tal, mas esse não-reconhecimento de seu valor pode ser neutralizado pelo contra-reconhecimento dentro da própria comunidade judaica como, digamos, o maior especialista no Talmude na Letônia.
Em vista da dinâmica sócio-psicológica desse mortífero jogo de reconhecimentos, não surpreende que o problema da "identidade judaica" só tenha surgido entre os modernos judeus ocidentais depois que a assimilação na sociedade judaica começou a debilitar o poder da própria comunidade judaica para atribuir identidades alternativas a seus membros, em oposição às identidades a eles atribuídas pelo anti-semitismo. Quando um indivíduo é obrigado a se ver refletido num espelho construído e modo a refletir uma imagem deformada, ele tem de procurar freneticamente outros homens com outros espelhos, pois de outra forma chegará a esquecer que um dia já teve outro rosto. Para usarmos palavras um pouco diferentes, a dignidade humana é uma questão de permissão social.
O mesmo relacionamento entre sociedade e identidade pode ser visto nos casos em que, por um motivo ou outro, a identidade de um indivíduo é mudada drasticamente. A transformação da identidade, tanto quanto sua gênese e sua manutenção, constitui um processo social. Já mostramos como qualquer reinterpretação do passado, qualquer "alternação" de uma auto-imagem para outra, exige a presença de um grupo que conspire para provocar a metamorfose. Aquilo que os antropólogos chamam de rito de passagem envolve o repúdio de uma antiga identidade (digamos, ser criança) e a iniciação numa nova identidade (como a de adulto). As sociedades modernas possuem ritos de passagem mais brandos, como a instituição do noivado, pela qual o indivíduo é gentilmente levado, por uma conspiração de todos os envolvidos, a transpor a linha divisória entre a liberdade do celibato e o cativeiro do casamento. Não fosse essa instituição, um número muito maior de pessoas seria tomado de pânico ao último momento, diante a enormidade do passo que estão prestes a dar.
Já vimos também como a "alternação" transforma identiades em situações altamente estruturadas como a educação religiosa e a psicanálise. Tomando novamente esta última como exemplo oportuno, ele envolve uma tensa situação social em que o indivíduo é levado a repudiar sua antiga concepção de si mesmo e assumir uma nova identidade, a qual foi programada para ele na ideologia psicanalista. Aquilo que os psicanalistas chama de “transferência”, a intensa relação entre analista e analisando, consiste essencialmente na criação de um meio social artificial dentro do qual possa ocorrer a alquimia da transformação, ou seja, dentro do qual essa alquimia possa tornar-se plausível ao indivíduo. Quanto mais durar a relação e quanto mais intensa se tornar, mais o indivíduo se liga à sua nova identidade. Finalmente ao ser "curado", essa nova identidade já se tornou realmente aquilo que ele é. Portanto, não há por que negar com uma gargalhada marxista, a afirmação do psicanalista de que seu tratamento será mais eficiente se o paciente o visitar com freqüência, durante muito tempo, e lhe pagar honorários consideráveis. Conquanto seja óbvio que isto coincide com o interesse econômico do analista, é bem plausível sociologicamente que a atitude esteja factualmente correta. O que a psicanálise faz é na verdade a construção de uma nova identidade. A ligação do indivíduo a essa nova identidade aumentará evidentemente na proporção direta do tempo, da intensidade e do investimento financeiro que ele aplicou em sua construção. E' claro que sua capacidade de rejeitar toda a história como uma impostura se tornará mínima depois de ele haver investido vários anos de sua vida e uma quantia astronômica de dinheiro.
O mesmo tipo de meio "alquímico" é criado em situações de "terapia de grupo". A recente popularidade deste método na psiquiatria americana não pode também ser interpretada simplesmente em bases econômicas. Ela tem sua base sociológica no princípio perfeitamente correto de que as pressões de grupo atuam efetivamente para fazer o indivíduo aceitar a nova imagem que lhe é proporcionada. Erving Goffman, sociólogo contemporâneo, fez uma descrição vívida da maneira como essas pressões atuam no contexto de um hospital de doenças mentais, com os pacientes finalmente "cedendo" à interpretação psiquiátrica de sua existência que constitui o quadro de referência comum do grupo "terapêutico".
O mesmo processo tem lugar sempre que todo um grupo de indivíduos tem de ser "quebrado" e levado a aceitar uma nova definição de si mesmos. Acontece no treinamento básico dos recrutas de um exército, e com muito mais intensidade no treinamento de pessoal para carreira permanente nas forças armadas, como nas militares. Acontece nos programas de doutrinação e formação de funcionários para organizações totalitárias como as SS nazistas ou a elite do Partido Comunista. Recentemente, adquiriu precisão científica nas técnicas de "lavagem cerebral" empregadas em prisioneiros das polícias secretas totalitárias. A violência desses métodos em relação às iniciações mais rotineiras da sociedade, deve ser explicada sociologicamente em termos do grau radical de transformação de identidade que é procurado e da necessidade funcional, nesses casos, de que a aquisição da nova identidade esteja à prova de novas "alternações".
Quando levada às suas conclusões lógicas, a teoria do papel faz muito mais que simplesmente nos proporcionar uma taquigrafia conveniente para a descrição de várias atividades sociais. Ela nos oferece uma antropologia sociológica, isto é, uma visão do homem baseada em sua existência na sociedade. Essa visão nos mostra que o homem representa papéis dramáticos no grande drama da sociedade e que, falando-se sociologicamente, ele é as máscaras que tem de usar para representar. Além disso, a pessoa aparece agora num contexto dramático, fiel à sua etimologia (persona, o termo técnico com que se designa as máscaras dos atores no teatro clássico). A pessoa é percebida como um repertório de papéis, cada um dos quais adequadamente equipado com uma determinada identidade. O âmbito da pessoa individual pode ser medido pelo número de papéis que é capaz de desempenhar. A biografia da pessoa se nos afigura agora como uma seqüência ininterrupta de desempenhos num palco, para diferentes platéias, às vezes exigindo mudanças totais de roupagens, sempre exigindo que o ator seja o personagem.
Tal visão sociológica desafia muito mais radicalmente que a maioria as teorias psicológicas a maneira como habitualmente nos vemos. Desafia radicalmente um dos mais caros pressupostos acerca do "eu" — sua continuidade. Visto sociologicamente, o "eu" deixa de ser uma entidade objetiva, sólida, que se transfere de uma situação para outra. Será um processo, criado e recriado continuamente em cada situação social de que uma pessoa participa, mantido coeso pelo tênue fio da memória Em nossa análise da reinterpretação do passado vimos quão tênue é esse fio. Tampouco é possível, dentro dessa estrutura interpretativa, buscar no inconsciente o conteúdo "real" da personalidade, uma vez que, como já vimos, o presuntivo ego inconsciente está tão sujeito à produção social quanto o chamado ego consciente. Em outras palavras, o homem não é também um ser social; é social em todos os aspectos de seu ser aberto à investigação empírica. Portanto, ainda falando-se sociologicamente, se alguém perguntar quem é "realmente" um indivíduo nesse caleidoscópio de papéis e identidades, só se pode responder através da enumeração das situações em que ele é uma coisa e das situações em que é outra.
Ora, é claro que tais transformações não podem ocorrer ad infinitum e que algumas são mais fáceis que outras. Um indivíduo se habitua a tal ponto com certas identidades que, mesmo quando sua situação social muda, ele encontra dificuldade para acompanhar as novas expectativas. Isto é demonstrado com toda clareza pelas dificuldades enfrentadas por indivíduos saudáveis e ativos quando obrigados a se aposentar. A capacidade de transformação da personalidade depende não só de seu contexto social, como também do grau de seu hábito a identidades anteriores e talvez também de certos traços genéticos. Conquanto essas modificações em nosso modelo se façam necessárias a fim de evitar uma radicalização de nossa posição, elas não reduzem apreciavelmente a descontinuidade da personalidade, revelada pela análise sociológica.
Se este modelo antropológico não muito edificante lembra outro seria o empregado na psicologia do budismo primitivo na índia, na qual a personalidade era comparada a uma longa fileira de velas, cada uma das quais acende o pavio da seguinte e se extingue. Os psicólogos budistas usavam essa imagem para desacreditar a idéia hindu da transmigração da alma, pretendendo dizer com o símile que não existe nenhuma entidade que passe de uma vela para outra. Entretanto, a mesma se ajusta muito bem a nosso modelo antropológico.
Tudo isto poderia deixar a impressão de que na verdade não existe diferença essencial entre a pessoa comum e aquelas acometidas pelo distúrbio que a psiquiatria chama de "personalidade múltipla". Desde que se acentuasse o adjetivo "essencial", talvez o sociólogo concordasse com isto. A diferença prática, contudo, é que para as pessoas "normais" (isto é, aquelas assim consideradas pela sociedade) há fortes pressões no sentido de mostrarem coerência nos vários papéis que desempenham e nas identidades que os acompanham. Tais pressões são externas e internas. Externamente, os outros atores com quem se praticam os jogos sociais, e de cujo reconhecimento dependem os papéis da própria pessoa, exigem que esta apresente ao mundo uma imagem razoavelmente coerente. Um certo grau de discrepância de papéis poderá ser permitido, mas se certos limites de tolerância forem ultrapassados a sociedade retirará seu reconhecimento ao indivíduo em questão, definindo-o como uma aberração moral ou psicológica. Assim, a sociedade permitirá que um indivíduo seja um déspota no escritório e um serve no lar, mas não lhe permitirá personificar um oficial de polícia e usar as roupas designadas para o sexo oposto. A fim de permanecer dentro dos limites fixados para suas pantomimas, o indivíduo talvez tenha de recorrer a manobras complicadas para garantir uma segregação de papéis. O papel imperial no escritório será ameaçado pelo aparecimento da esposa numa reunião da diretoria, ou o papel de uma pessoa num círculo onde é tida como exímia narradora é ameaçado pela intrusão de um membro do outro círculo onde narrador é tipificado como um sujeito que nunca abre a boca sem meter os pés pelas mãos. Essa segregação de papéis torna-se cada vez mais possível em civilização urbana contemporânea, com sua anonimidade e seus rápidos meios de transporte, embora persista o perigo de que pessoas com imagens contraditórias de si mesmas subitamente tropecem uma na outra e façam periclitar suas mútuas representações. Esposa e secretária poderiam encontrar-se para tomar um café e em sua conversa pulverizar as imagens do imperador no escritório e do servo no lar. Nesse ponto, sem dúvida será necessário um psicoterapeuta para juntar os cacos do indivíduo.
Há também pressões internas no sentido de coerência, talvez baseadas em profundíssimas necessidades psicológicas do indivíduo de se ver como uma totalidade. Até mesmo o ator urbano contemporâneo, que representa papéis mutuamente irreconciliáveis em diferentes áreas de sua vida poderá talvez sentir tensões internas, embora possa controlar as externas mediante a cuidadosa separação de suas diversas mises en scène. Para evitar tais ansiedades, as pessoas geralmente segregam sua consciência, bem como sua conduta. Não queremos dizer com isto que elas "reprimam" suas identidades discrepantes para algum "inconsciente", pois dentro de nosso modelo temos todos os motivos para suspeitar de tais conceitos. Queremos dizer que elas focalizam sua atenção apenas naquela identidade particular de que, por assim dizer, necessitam no momento. As outras identidades são esquecidas enquanto durar essa cena específica. Este processo poderá talvez ser ilustrado pela maneira como atos sexuais desaprovados pela sociedade ou atos moralmente questionáveis de qualquer espécie são segregados na consciência. O homem que pratica, por exemplo, masoquismo homossexual possui uma identidade cuidadosamente construída e guardada apenas para essas ocasiões. Quando a ocasião termina, ele devolve a identidade na portaria, por assim dizer, e volta para casa como pai afetuoso, marido responsável e talvez até amante impetuoso de sua mulher. Da mesma forma, o juiz que sentencia um réu à pena de morte segrega a identidade com a qual assim age do resto de sua consciência, na qual é um ser humano bondoso, tolerante e sensível. O comandante do campo de concentração nazista que escreve cartas sentimentais aos filhos não passa de um exemplo extremo de algo que ocorre continuamente na sociedade.
O leitor erraria redondamente se julgasse que lhe estamos apresentando uma imagem da sociedade na qual todos tramam, conspiram e deliberadamente vestem disfarces para enganar-se mutuamente. Pelo contrário, a representação de papéis e os processos formadores de identidade são geralmente irrefletidos e não planejados, quase automáticos. As necessidades psicológicas de coerência da auto-imagem a que nos referimos garantem isto. A fraude deliberada exige um grau de autocontrole psicológico de que poucas pessoas são capazes. E' por isso que a insinceridade é fenômeno relativamente raro. A maioria das pessoas é sincera, porque este é o caminho mais fácil, psicologicamente. Isto é, elas acreditam no que representam, esquecem convenientemente a representação anterior e seguem pela vida contentes, convictas de estarem à altura de todas as expectativas. A sinceridade é a consciência do homem que se empolga com sua própria representação. Ou, como se expressou David Riesman, o homem sincero é aquele que acredita em sua própria propaganda. Em vista da dinâmica sócio-psicológica que acabamos de analisar, é muito provável que os assassinos nazistas sejam sinceros ao se descrever como burocratas encarregados de certas tarefas desagradáveis, que realmente abominavam, sendo talvez incorreto supor que eles só digam isso para ganhar a simpatia de seus juizes. Seu remorso humanitário será provavelmente tão sincero quanto sua passada crueldade. Como observou o romancista austríaco Robert Musil, no coração de todo assassino há um ponto em que ele é eternamente inocente. As estações da vida se sucedem, e uma pessoa tem de mudar de rosto como muda de roupa. No momento não estamos interessados nos problemas psicológicos ou no significado ético dessa "falta de caráter". Só queremos frisar que este é o procedimento habitual.
Para relacionarmos o que acabamos de dizer sobre a teoria dos papéis com o que ficou dito no capítulo precedente a respeito dos sistemas de controle, reportamo-nos àquilo que Hans Gerth e C. Wright Mills chamaram de "seleção de pessoas". Toda estrutura social seleciona as pessoas de que necessita para seu funcionamento e elimina aquelas que de uma maneira ou de outra não servem. Se não houver pessoas a serem selecionadas, elas terão de ser inventadas — ou melhor, serão produzidas de acordo com as especificações necessárias. Dessa forma, através de seus mecanismos de socialização e "formação", a sociedade manufatura o pessoal de que necessita para funcionar. O sociólogo vira de cabeça para baixo a idéia comum de que certas instituições surgem porque existem pessoas em disponibilidade. Pelo contrário, guerreiros ferozes surgem porque há exércitos a serem enviados a batalhas, homens piedosos porque há igrejas a construir, eruditos porque há universidades onde lecionar e assassinos porque há crimes a cometer. Não é correto dizer que cada sociedade tem os homens que merece. Antes, cada sociedade produz os homens de que necessita. Podemos tirar algum consolo do fato de que este processo de produção às vezes enfrenta dificuldades técnicas. Veremos mais tarde que, além disso, ele pode ser sabotado. No momento, contudo, podemos constatar que a teoria dos papéis e suas percepções concomitantes acrescentam uma importante
dimensão à nossa perspectiva sociológica da existência humana.
Se a teoria dos papéis nos proporciona idéias vívidas sobre a presença da sociedade no homem, idéias semelhantes podem ser obtidas de uma outra direção muito diferente — a chamada sociologia do conhecimento. Ao contrário da teoria dos papéis, a sociologia do conhecimento tem origem europeia. O termo foi usado pela primeira vez na década de 20 pelo filósofo alemão Max Scheler. Outro pensador europeu, Karl Mannheim, que passou os últimos anos de sua vida na Inglaterra, foi um dos que despertaram a atenção do pensamento anglo-saxônico para a nova disciplina. Não cabe no escopo deste livro esmiuçar as interessantes origens intelectuais da sociologia do conhecimento, que remontam a Marx, Nietzsche e ao historicismo alemão. A sociologia do conhecimento entra em nosso raciocínio para demonstrar que, tanto quanto os homens, as idéias têm localização social. Na verdade, isto pode servir como definição da disciplina para nossos propósitos: a sociologia do conhecimento trata da localização social das idéias.
Com mais clareza que qualquer outro ramo da sociologia, a sociologia do conhecimento elucida o que se quer dizer ao afirmar que o sociólogo é o homem que pergunta a todo instante: "Quem disse?" Ela rejeita a idéia de que o pensamento ocorra isolado do contexto social dentro do qual determinados homens pensam sobre determinadas coisas. Mesmo no caso de idéias muito abstratas que aparentemente têm pouquíssima conexão social, a sociologia do conhecimento tenta traçar a linha que une o pensamento, seu autor e o mundo social deste. Isto pode ser visto com toda facilidade nos casos em que o pensamento serve para legitimizar uma determinada situação social, ou seja, quando ele a explica, justifica e santifica.
Suponhamos um exemplo simples. Digamos que numa sociedade primitiva algum alimento necessário só possa ser obtido viajando-se por mares traiçoeiros, infestados de tubarões. Duas vezes por ano, os homens da tribo partem para buscá-lo em suas precárias canoas. Suponhamos que as convicções religiosas dessa sociedade incluam um artigo de fé segundo o qual todo homem que deixar de participar dessa expedição perderá sua virilidade, exceto os sacerdotes, cuja virilidade é mantida por seus sacrifícios diários aos deuses. Essa convicção cria uma motivação para aqueles que se arriscam na viagem perigosa e proporciona simultaneamente uma legitimação para os sacerdotes, que ficam sempre no bem-bom. E' desnecessário acrescentar que é bem provável que foram os sacerdotes quem inventaram a teoria. Em outras palavras, suspeitaremos que estamos diante de uma ideologia sacerdotal. Entretanto, isto não significa que ela não seja funcional para a sociedade como um todo — afinal de contas, alguém tem de ir, pois de outra forma sobrevirá a fome.
Falamos que existe uma ideologia quando uma certa idéia atende a um interesse da sociedade. Com muita freqüência, embora nem sempre, as ideologias destorcem sistematicamente a realidade social com o intuito de sobressair onde isto lhes interessa. Ao examinar os sistemas de controle estabelecidos por grupos ocupacionais já vimos a maneira como as ideologias podem legitimar as atividades de tais grupos. O pensamento ideológico, todavia, é capaz de abranger coletividades humanas muito maiores. Por exemplo, a mitologia racial do Sul dos Estados Unidos serve para legitimar um sistema social praticado por milhões de seres humanos. A ideologia da "livre empresa" serve para camuflar as atividades monopolísticas de grandes companhias americanas, cuja única característica que têm em comum com o capitalista ao velho estilo é a disposição constante de fraudar o público. A ideologia marxista, por sua vez, serve para legitimar a tirania praticada pela máquina do Partido Comunista, cujos interesses estão para o de Karl Marx assim como os de Elmer Gentry estavam para os do Apóstolo Paulo. Em cada um desses casos, a ideologia tanto justifica o que é feito pelo grupo cujo interesse é atendido, como interpreta a realidade social de maneira a tornar a justificação plausível. Essa interpretação muitas vezes parece extravagante a quem está de fora e "não entende o problema" (isto é, que não tem interesses a defender). O racista americano é capaz de afirmar ao mesmo tempo que as mulheres brancas têm profunda repugnância ao mero pensamento de relações sexuais com um negro, e que a mais leve sociabilidade inter-racial levará diretamente a tais relações sexuais. E o gerente de uma indústria insistirá em que suas atividades tendentes a manipular preços são realizadas em defesa do mercado livre. E o funcionário do Partido Comunista arranjará uma explicação para provar que a limitação de escolha eleitoral a candidatos aprovados pelo partido constitui expressão de verdadeira democracia.
Convém ressaltar mais uma vez que geralmente as pessoas que manifestam essas opiniões estão sendo absolutamente sinceras. O esforço moral necessário para mentir deliberadamente está além da maioria das pessoas. E' muito mais fácil iludir a si próprio. Por conseguinte, é importante distinguir o conceito de ideologia dos conceitos de mentira, fraude, propaganda ou prestidigitação. O mentiroso, por definição, sabe que está mentindo. O ideólogo, não. Não nos interessa neste ponto perguntar qual dos dois é eticamente superior. Desejamos apenas acentuar ainda uma vez a maneira irrefletida e não planejada como a sociedade normalmente funciona. A maioria das teorias de conspiração exageram grosseiramente a previdência intelectual dos conspiradores.
As ideologias também podem funcionar "latentemente", para usarmos a expressão de Merton em outro contexto. Voltemos mais uma vez ao Sul dos Estados Unidos como exemplo. Uma das coisas que ele tem de interessante é a coincidência geográfica entre o Cinturão Negro e o Cinturão da Bíblia. Isto é, aproximadamente a mesma área que pratica o sistema racial sulista em sua plena pureza apresenta também a maior concentração de protestantismo ultraconservador, fundamentalista. Pode-se explicar essa coincidência historicamente, mostrando-se o isolamento do protestantismo sulista em relação às correntes mais amplas do pensamento religioso desde os grandes cismas denominacionais, devido à questão escravagista, antes da Guerra da Secessão. Essa coincidência poderia ser também interpretada como expressão de dois aspectos diferentes de barbárie intelectual. Não refutaríamos nenhuma dessas explicações, mas argumentaríamos que uma interpretação sociológica em termos de funcionalidade ideológica daria uma visão melhor do fenômeno.
O fundamentalismo protestante, conquanto obcecado pela idéia de pecado, tem um conceito curiosamente limitado de sua extensão. Os pregadores revivalistas que vociferam contra a perversidade do mundo atêm-se invariavelmente numa gama um tanto limitada de transgressões morais — fornicação, embriaguez, dança, jogo, pragas. Na verdade, dão tanta ênfase à primeira dessas transgressões que na linguagem comum do moralismo protestante o termo "pecado" é quase sinônimo do termo mais específico "ofensa sexual". Diga-se o que se disser a respeito desse rol de atos perniciosos, todos eles têm em comum seu caráter essencialmente privado. Na verdade, se um pregador revivalista chega a mencionar questões públicas, será geralmente em termos da corrupção privada dos detentores de cargos públicos. As autoridades do governo roubam, o que é mau. Também fornicam, bebem e jogam, o que presumivelmente ainda é pior. Ora, a limitação do conceito de ética cristã a delitos pessoais tem funções óbvias numa sociedade cujas organizações sociais fundamentais são dúbias, para se dizer o mínimo, quando confrontadas com certos princípios do Novo Testamento e com o credo igualitário da nação que nele acredita ter suas raízes. O conceito privado de moralidade do fundamentalismo protestante concentra atenção nas áreas de conduta que são irrelevantes para a manutenção do sistema social, e desvia a atenção daquelas áreas onde uma inspeção ética criaria tensões para o perfeito funcionamento do sistema. Em outras palavras, o fundamentalismo protestante é ideologicamente funcional para a manutenção do sistema social do sul dos Estados Unidos.
Não é necessário irmos até o ponto em que ele legitima diretamente o sistema, como nos casos em que a segregação racial é proclamada como uma ordem natural ditada por Deus. No entanto, mesmo na ausência de tal legitimação "manifesta", as convicções religiosas em questão funcionam "latentemente" para manter o sistema.
Embora a análise das ideologias ilustre claramente o que se entende por localização social das idéias, seu âmbito ainda é muito estreito para demonstrar o pleno significado da sociologia do conhecimento. Esta disciplina não trata exclusivamente das idéias que servem a determinados interesses ou que deturpam a realidade social. Ao invés disso, a sociologia do conhecimento reivindica jurisdição sobre todo o reino do pensamento, não, é claro, considerando-se como árbitro de validade (o que seria megalomaníaco) mas sim na medida em que qualquer pensamento está fundado na sociedade. Não queremos dizer com isto (como diria um intérprete marxista) que todo pensamento humano deva ser considerado como "reflexo" direto de estruturas sociais, nem tampouco que as idéias devam ser vistas como inteiramente impotentes para traçar o rumo dos acontecimentos. O que queremos dizer é que todas as ideias são examinadas cuidadosamente para se determinar sua localização na existência social das pessoas que as cogitaram. Nessa medida, pelo menos, é correio afirmar que a sociologia do conhecimento seja de tendência antiidealisía.
Toda sociedade pode ser vista em termos de sua estrutura social e de seus mecanismos sócio-psicológicos, e também em termos da cosmovisão que atua como o universo comum habitado por seus membros. As cosmo-visões variam socialmente, de uma sociedade para outra e dentro de diferentes setores da mesma sociedade. E' nesse sentido que se diz que um chinês "vive num mundo diferente" do mundo de um ocidental. Para ficarmos com este exemplo por um instante, Mareei Granet, sinólogo francês fortemente influenciado pela sociologia durkheimiana, analisou o pensamento chinês exatamente sob essa perspectiva de investigar seu "mundo diferente". A diferença, naturalmente, é patente em questões como filosofia política, religião ou ética. Entretanto, segundo Granet, diferenças fundamentais podiam também ser encontradas em categorias como tempo, espaço e número. Afirmativas muito semelhantes têm sido feitas em análises de outras espécies, como as que comparam os "mundos" da antiga Grécia e do antigo Israel, ou o "mundo" do hinduismo tradicional com o do moderno Ocidente.
A sociologia da religião constitui uma das áreas mais fecundas para esse tipo de investigação, em parte talvez porque nela o paradoxo da localização social aparece de forma particularmente incisiva. Parece de todo impróprio que idéias concernentes aos deuses, ao cosmos dos homens, presos a todas as relatividades humanas de geografia e história. Isto tem constituído uma das pedras de tropeço emocionais da erudição bíblica, sobretudo quando esta tenta descobrir o que chama de Sitz im Leben (literalmente, "sítio na vida" — quase a mesma coisa a que demos o nome de localização social) de fenômenos religiosos particulares. Uma coisa é discutir as afirmações eternas da fé cristã, e outra muito diferente é investigar como essas afirmações podem estar relacionadas às frustrações, ambições e ressentimentos, muito temporais, de determinadas camadas sociais nas cidades poliglotas do Império Romano aonde os primeiros missionários cristãos levaram sua mensagem. Mais que isso, porém, o próprio fenômeno da religião em si pode ser localizado socialmente em termos de funções específicas, tais como legitimação da autoridade política e abrandamento de rebelião social (aquilo que Weber chamou de "teodicéia do sofrimento" — ou seja, a maneira como a religião empresta sentido ao sofrimento, de modo a convertê-lo, de fonte de revolução a veículo de redenção). A universalidade da religião, longe de constituir prova de sua validade metafísica, é explicável em termos de tais funções sociais. Ademais, as mudanças dos padrões religiosos no decurso da história também podem ser interpretados em termos sociológicos.
Tomemos como exemplo a distribuição de filiações religiosas no mundo ocidental contemporâneo. Em muitos países ocidentais, a freqüência à igreja pode ser correlacionada quase rigorosamente com classes sociais, de modo que, por exemplo, a atividade religiosa constitui uma das marcas de status de classe média, ao passo que a abstenção de tal atividade caracteriza a classe proletária. Em outras palavras, parece haver uma relação entre a fé de uma pessoa, digamos, na Trindade (ou pelo menos demonstrações exteriores dessa fé) e sua renda anual — abaixo de certo nível de renda parece que tal fé perde toda plausibilidade, ao passo que acima desse nível ela se torna coisa natural. A sociologia do conhecimento indagará como surgiu essa espécie de relação entre estatística e salvação. As respostas, inevitavelmente, serão sociológicas — em termos da funcionalidade da religião nesse ou naquele meio social. O sociólogo não poderá, naturalmente, fazer quaisquer declarações sobre questões teológicas em si, mas será capaz de demonstrar que essas questões raramente têm sido transacionadas num vácuo social.
Para voltarmos a um exemplo anterior, o sociólogo não será capaz de dizer às pessoas se lhes convém ligar-se ao fundamentalismo protestante ou a uma versão menos conservadora dessa fé, mas poderá mostrar-lhes como a escolha funcionará socialmente. Tampouco estará em condições de decidir para as pessoas se devem fazer batizar seus filhos ou se devem protelar esse ato, mas poderá informá-las qual a expectativa quanto a isso nesse ou naquele estrato social. Tampouco ele poderá sequer estimar a plausibilidade de uma vida além-túmulo, mas poderá informar em que carreiras profissionais será conveniente a urna pessoa pelo menos simular tal convicção.
Além dessas questões da distribuição social de religiosidade, alguns sociólogos contemporâneos (como, por exemplo, Helmut Schelsky e Thomas Luckmann) têm indagado se os tipos de personalidade produzidos pela moderna civilização industrial permitem a continuação dos padrões religiosos tradicionais e se, por vários motivos sociológicos e sócio-psicológicos, o mundo ocidental talvez já não esteja num estágio pós-cristão. A análise dessas questões, entretanto, nos afastaria de nossa linha de raciocínio. Os exemplos religiosos deverão ter sido suficientes para indicar a maneira como a sociologia do conhecimento localiza as idéias na sociedade.
O indivíduo, por conseguinte, adquire socialmente sua cosmovisão quase da mesma forma como adquire seus papéis e sua identidade. Em outras palavras, tanto quanto suas ações, suas emoções e sua auto-interpretação são pré-definidas para ele pela sociedade, da mesma forma que sua atitude cognitiva em relação ao universo que o rodeia. Alfred Schuetz expressou este falo em sua frase "mundo aceito sem discussão" — o sistema de pressupostos (aparentemente óbvios e que se auto-ratificam) com relação ao mundo que cada sociedade engendra no curso de sua história. Essa cosmovisão determinada socialmente já está, pelo menos em parte, incorporada na linguagem usada pela sociedade. E' possível que certos lingüistas tenham exagerado a importância desse único fator na criação de qualquer cosmovisão específica, mas restam poucas dúvidas de que a linguagem de uma pessoa pelo menos ajuda a dar forma à sua atitude para com a realidade. Além disso, obviamente. a linguagem não é escolhida por nós, sendo-nos imposta pelo grupo social incumbido de nossa socialização inicial. A sociedade pré-define para nós esse mecanismo simbólico fundamental com o qual apreendemos o mundo, ordenamos nossa experiência e interpretamos nossa própria existência.
Da mesma forma, a sociedade fornece nossos valores, nossa lógica e o acervo de informação (ou desinformação) que constitui nosso "conhecimento". Raríssimas pessoas, e mesmo essas apenas em relação a fragmentos dessa cosmovisão, estão em condições de reavaliar aquilo que lhes foi assim imposto. Na verdade, não sentem nenhuma necessidade de reavaliação porque a cosmovisão em que foram socializados lhes parece óbvia. Uma vez que ela também será considerada assim por quase todos os membros de sua própria sociedade, essa cosmovisão ratifica-se, valida-se. Sua "prova" está na experiência reiterada de outros homens
que também a tomam como coisa natural, assentada. Enunciemos essa perspectiva da sociologia do conhecimento numa proposição sucinta: a realidade é construída socialmente. Com essa formulação, a sociologia do conhecimento ajuda a sintetizar a afirmativa de Thomas sobre o poder da definição social e lança mais luz sobre a imagem sociológica da natureza precária da realidade.
A teoria dos papéis e a sociologia do conhecimento representam elementos muito diferentes do pensamento sociológico. Os importantes subsídios que fornecem a respeito dos processos sociais ainda não foram integrados teoricamente, exceto talvez no sistema sociológico contemporâneo de Talcott Parsons, demasiado complexo para ser exposto aqui. Contudo, uma conexão relativamente simples entre as duas abordagens é proporcionada pela chamada teoria do grupo de referência, outra contribuição americana. Utilizado pela primeira vez por Herbert Hyman na década de 40, o conceito do grupo de referência foi desenvolvido por vários sociólogos americanos (entre os quais Robert Merton e Tamotsu Shibutani). Tem sido muito útil na pesquisa do funcionamento de organizações de vários tipos, tais como militares e industriais, embora essa utilização não nos interesse aqui.
Já se fez distinção entre os grupos de referência de que uma pessoa faz parte e aqueles para os quais ela orienta suas ações. Este último tipo atenderá a nossos objetivos. Um grupo de referência, nesse sentido, é a coletividade cujas opiniões, convicções e rumos de ação são decisivos para a formação de nossas próprias opiniões, convicções e rumos de ação. O grupo de referência nos proporciona um modelo com o qual nos podemos comparar continuamente. Especificamente, ele nos oferece um determinado ponto de vista sobre a realidade social, que poderá ou não ser ideológico no sentido anteriormente mencionado, mas que em qualquer caso será parte e parcela de nossa participação nesse grupo particular.
Certa vez a revista The New Yorker publicou um cartum mostrando um jovem universitário bem vestido falando a uma moça desgrenhada que desfila numa manifestação, portando um cartaz exigindo o fim dos testes nucleares. A legenda dizia mais ou menos: "Tenho a impressão de que não a verei hoje à noite no Clube dos Conservadores Jovens". Esta vinheta demonstra a larga gama de grupos de referência hoje disponíveis a um universitário. Qualquer estabelecimento de ensino superior, com exceção dos muitos pequenos, oferece uma ampla variedade de tais grupos. O estudante sequioso de participação poderá unir-se a qualquer número de grupos de definição política, poderá orientar-se para um bando beatnik, ligar-se a um círculo de gente-bem ou simplesmente andar de um lado para outro com o grupinho formado em torno de um professor popular. E' desnecessário dizer que, em cada um desses casos, será preciso cumprir certos requisitos em termos de vestuário e comportamento — entremear a conversa com jargão esquerdista, boicotar a barbearia local, usar paletó e gravata ou andar descalço a partir da primavera. Mas a escolha de grupo trará consigo também um conjunto de símbolos intelectuais, os quais seria conveniente exibir com um ar de fidelidade — ler a National Review ou Dissent (conforme o caso), apreciar a poesia de Allen Ginsberg, lida ao som do jazz mais dissonante possível, conhecer os nomes de batismo dos presidentes de meia dúzia de companhias em que se está de olho ou demonstrar desdém indizível por alguém que admita não conhecer os Poetas Metafísicos. O republicanismo à Ia Goldwater, o Trotskysmo, o Zen Budismo ou a Nova Critica — todas essas augustas possibilidades de Weltanschauung podem engrandecer ou estragar reuniões nos sábados à noite, envenenar as relações com os colegas de quarto ou tornar-se base de fortes alianças com pessoas que antes se evitava a todo transe. E então se descobre ser possível "ganhar" certas moças com um carro esporte e outras com John Donne. E' claro que só um sociólogo mal-intencionado poderia julgar que a escolha entre um Jaguar ou a poesia de Donne será determinada em termos de necessidade estratégica.
A .teoria do grupo de referência demonstra que a filiação ou a desafiliação normalmente traz consigo compromissos cognitivos específicos. Uma pessoa se liga a um grupo e por isso "sabe" que o mundo é isso ou aquilo. Outra troca este grupo por outro e passa a "saber" que devia estar enganada. Todo grupo a que urna pessoa se reporta proporciona um ângulo de visão privilegiado do mundo. Todo papel incorpora uma cosmovisão. Ao se escolher pessoas específicas, escolhe-se um lugar específico do mundo para viver. Se a sociologia do conhecimento nos oferece um panorama da construção social da realidade, a teoria do grupo de referência aponta-nos as muitas pequenas oficinas em que "igrejinhas" de construtores do universo fabricam seus modelos do cosmo. A dinâmica sócio-psicológica que condiciona este processo será presumivelmente a mesma que já examinamos ao analisar a teoria dos papéis — o impulso humano de ser aceito, de participar, de viver num mundo junto com outras pessoas.
Algumas das experiências realizadas por psicólogos sociais sobre a maneira como a opinião de grupo afeta até mesmo a percepção de objetos físicos dão-nos uma idéia da força irresistível desse impulso. Diante de um objeto de, digamos, 70 cm de comprimento, um indivíduo progressivamente modificará sua estimativa inicial, correta, se colocado num grupo experimental em que todos os membros afirmem terem certeza de que o comprimento real será 30 cm aproximadamente. Não é de espantar, portanto, que as opiniões grupais no tocante a questões políticas, éticas ou estéticas exerçam força ainda maior, uma vez que o indivíduo assim pressionado não pode recorrer, como último argumento, a um gabarito político, ético ou estético. Se o tentasse fazer, o grupo naturalmente negaria o gabarito. A medida de validade de um grupo é o gabarito de ignorância de outro grupo. Os critérios de canonização e amaldiçoamento são intercambiáveis. Quem escolhe seus companheiros, escolhe seus deuses.
Destacamos neste capítulo alguns elementos do pensamento sociológico que nos proporcionam uma imagem da sociedade atuando no homem, ampliando nossa anterior perspectiva do homem atuando na sociedade. Neste ponto, nossa imagem da sociedade como uma enorme prisão já não parece satisfatória, a menos que lhe acrescentemos o detalhe de grupos de prisioneiros ocupados ativamente em manter suas paredes intactas. Nosso encarceramento na sociedade já nos parece algo criado tanto por nós próprios quanto pela operação de forças externas. Uma imagem mais adequada da realidade social seria agora a de um teatro de fantoches, com a cortina se levantando e revelando as marionetes saltando nas extremidades de seus fios invisíveis, representando animadamente os pequenos papéis que lhe foram atribuídos na tragicomédia a ser encenada. Entretanto, a analogia não é bastante ampla. O Pierrô do teatro de fantoches não tem vontade nem consciência. Mas o Pierrô do palco social nada deseja senão o destino que o aguarda no cenário — e possui todo um sistema filosófico para prová-lo.
O termo chave usado pelos sociólogos para se referir aos fenômenos discutidos neste capítulo é "internalização". O que acontece na socialização é que o mundo social é internalizado pela criança. O mesmo processo, embora talvez num grau mais fraco, ocorre a cada vez que o adulto é iniciado num novo contexto social ou num novo grupo social. A sociedade, então, não é apenas uma coisa que existe "lá", no sentido durkheimiano, mas ela também existe "aqui", parte de nosso ser mais íntimo. Apenas uma compreensão da internalização dá sentido ao fato incrível de que a maioria dos controles externos funcionem durante a maior parte do tempo para a maior parte das pessoas de uma sociedade. A sociedade não só controla nossos movimentos, como ainda dá forma à nossa identidade, nosso pensamento e nossas emoções. As estruturas da sociedade tornam-se as estruturas de nossa própria consciência. A sociedade não se detém à superfície de nossa pele. Ela nos penetra, tanto quanto nos envolve. Nossa servidão para com a sociedade é estabelecida menos por conquista que por conluio. Às vezes, realmente, somos esmagados e subjugados. Com freqüência muito maior caímos na armadilha engendrada por nossa própria natureza social. As paredes de nosso cárcere já existiam antes de entrarmos em cena, mas nós a reconstruímos eternamente. Somos aprisionados com nossa própria cooperação.
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DE QUE MANEIRA A ESCOLA FORTALECE NO INDIVÍDUO A IMPORTÂNCIA/ INFLUÊNCIA DO OUTRO GENERALIZADO?